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terça-feira, 22 de agosto de 2017

Em estado crítico, São Francisco tem cemitério de obras paradas na Bahia


"Aqui eram a avenida principal e o cais onde atracavam os navios a vapor", diz Carlos dos Santos, 39, enquanto caminha entre tijolos quebrados e pedaços de pedra.

As lembranças são de uma cidade em que ele não viveu. Carlos nasceu no mesmo ano em que a velha Remanso, município do norte da Bahia, foi inundado pelas águas do Rio São Francisco para dar lugar à barragem de Sobradinho.

Mas, com o reservatório com apenas 9,3% de sua capacidade, as ruínas da cidade velha reapareceram. E é lá que Carlos controla o fluxo de caminhões-pipa que vão abastecer casas que ficam na zona urbana da nova Remanso, hoje com 50 mil habitantes.

Os caminhões foram contratados porque o município, na beira do rio, tem problemas de abastecimento. Remanso é uma das dezenas de cidades ribeirinhas que ficaram com a construção de sistemas de distribuição de água e tratamento de esgoto pela metade –obras que fazem parte do projeto de revitalização do Rio São Francisco.

Lançado há um ano pelo presidente Michel Temer (PMDB) com a promessa de retomar estas obras, o "Plano Novo Chico" não mudou o cenário de Remanso, da vizinha Sento Sé e de outras cidades das margens do rio.

A Folha analisou a execução orçamentária das sete ações exclusivamente ligadas à revitalização. Os dados mostram queda nos investimentos em combate à erosão, obras em hidrovias, sistemas de água, saneamento e coleta de lixo nas cidades.

Em 2015, último ano de mandato da ex-presidente Dilma (PT), o governo aplicou R$ 125 milhões nas sete ações da revitalização. No ano seguinte, quando Temer assumiu o governo em maio, o gasto caiu para R$ 96 milhões. Em 2017, de janeiro a julho, foram aplicados apenas R$ 19 milhões.

O "Novo Chico" prevê investimentos de R$ 7 bilhões na revitalização do rio até 2026 –sendo R$ 1,1 bilhão até 2019.

CAIXA-D'ÁGUA VAZIA

Moradora da periferia de Remanso, que fica na parte mais alta da cidade, Maria Cristina Barbosa, 39, chega a ficar dias sem ter água nas torneiras. Precisa armazenar a água em galões e baldes para cozinhar e beber.

Nas proximidades da sua casa, uma caixa-d'água nova com capacidade para 200 mil litros que atenderia ao seu bairro está pronta desde 2010. Mas, sem receber água, já começa a ter o concreto rachado pelo calor do sol.

O sistema que levaria a água para o bairro ficou incompleto. Segundo a Prefeitura de Remanso, a empresa que o estava construindo abandonou a obra deixando, inclusive, várias ruas da cidade sem calçamento e canos enterrados sem serventia.

Como paliativo, a prefeitura abastece as casas do bairro com carros-pipa, numa operação que chega a custar R$ 100 mil mensais entre o pagamento dos caminhões, combustível e o aluguel de um gerador para as bombas.

A situação de Remanso não é um caso isolado. Apenas na Bahia, dez cidades estão com obras paralisadas e nove com o sistema de esgotamento concluído, mas sem operar.

Em outras nove cidades, as obras sequer foram iniciadas. Em apenas duas há obras em execução. Os dados são de levantamento dos Ministérios Públicos Federal e da Bahia.

"Uma ou outra obra foi retomada. Mas não houve uma sinalização política clara de que a revitalização é uma prioridade", afirma a promotora Luciana Khoury, coordenadora do núcleo do Rio São Francisco da Promotoria.

A conclusão das obras, diz, não é tarefa fácil. Em Jeremoabo (BA), por exemplo, o projeto de saneamento terá que ser refeito por um detalhe simples: um conjunto residencial foi erguido no terreno onde ficaria a estação de tratamento. Em outras cidades, bombas foram roubadas e tanques de decantação entregues com rachaduras.

Em Sento Sé, cidade que fica na margem oposta do lago de Sobradinho, a estação de tratamento de esgoto está concluída, mas não funciona. Devido ao longo período sem operação, alguns componentes do sistema precisam ser recuperados.

Enquanto isso, a poucos metros da estação, o esgoto de casas corre a céu aberto em direção ao São Francisco entre montanhas de lixo.

No caminho, a água suja passa pelo terreno onde o aposentado Nelson de Barros, 77, cria gado: "Sei que é perigoso mantê-los aqui, mas vou fazer o quê? Tenho que correr atrás". Com uma pá, ele cava uma vala para desviar o esgoto para o terreno ao lado. Com isso, a água correrá na direção da estação de tratamento sem uso nas margens do rio.

CIDADES RIBEIRINHAS

O vento forte cruza o rio, atinge o solo e carrega uma areia fina. Os grãos entram em atrito com a pele como um enxame de pequenas abelhas. É quase impossível abrir os olhos e mirar o horizonte.

Num raio de quilômetros, o cenário se limita a areia, pequenos charcos e uma vegetação rasteira recente na qual não há lugar nem para os tradicionais mandacarus do sertão. A seca que atingiu a barragem de Sobradinho criou um deserto entre o leito do rio e as cidades que o margeiam.

Maior lago artificial do país, Sobradinho está com uma vazão de 500 metros cúbicos por segundo, a menor desde que a barragem começou a funcionar no final dos anos 1970.

A água para irrigação, responsável por quase 70% da captação feita no rio, passou a ser restrita. Nas quartas-feiras, é proibido ligar as bombas para retirar água do São Francisco e alguns de seus afluentes.

Em Remanso, sistema de captação de água que há três anos funcionava normalmente, hoje está desativado sob um leito seco. A água que era captada a dois quilômetros da cidade atualmente tem que ser bombeada por sete quilômetros até chegar às primeiras casas.

"Como nosso sistema de distribuição de água vai por pressão, não por gravidade, temos ainda mais dificuldade para bombear para as regiões mais altas da cidade", afirma o prefeito de Remanso, Zé Filho (PSD).

A pesca, que foi a principal atividade econômica da cidade, hoje tá praticamente parada. Os maiores frigoríficos da cidade estão com as portas fechadas.

Proprietário de uma fábrica de gelo, Antônio Bezerra Dias, 50, chegava a vende 15 toneladas de gelo por dia, hoje não vende mais que três. "Com o rio seco, os peixes somem. Está muito devagar o movimento", diz.

Num dos charcos de água, Paulo Gomes dos Santos, 38, o Galego, joga a rede de pesca que volta vazia. Há um mês, ele não consegue trabalho como pedreiro ou lavrador, áreas que costuma atuar, e faz da pesca a sua atividade diária.

Mesmo sem conseguir pescar peixes com valor comercial, sempre volta no dia seguinte. "Melhor que ficar na rua, sem fazer nada ou bebendo cachaça", diz.

PRAIA SECA

Também falta peixe para Francisco Alves Nogueira, 58. Ele é dono de um restaurante na praia fluvial de Remanso, mas há mais de três anos a água do rio não passa nem perto de lá. Restou apenas uma imensidão de areia sob um sol forte do sertão.

Ele diz que a situação da barragem afastou não só os clientes, mas também peixes como o tradicional surubim para usado para servir a moqueca que é carro-chefe da casa.

Para um mergulho no rio, os moradores trocaram a prainha pelas margens das ruínas da cidade velha, que virou ponto turístico. Na segunda-feira (7), um ônibus escolar apinhado de crianças aportou por lá.

Pescador de ofício, Bonfim Francisco da Silva, 59, montou uma barraca para vender bebidas no local. O movimento, contudo, só acontece nos finais de semana.

"Mesmo assim, não é lá essas coisas. Não tem emprego, não tem colheita, está todo mundo sem dinheiro", afirma.

De segunda a sexta, com as cadeiras da barraca vazias, enfrenta o sol e o vento. E observa o vaivém dos caminhões-pipa que cruzam o deserto de areia retirando mais água de um rio que pouco tem.

OUTRO LADO

Em nota, o Ministério da Integração Nacional, responsável pela maior parte das obras, informou que "os investimentos previstos serão disponibilizados ao longo do tempo, por isso, é incorreto analisar o orçamento ano a ano".

Ainda sobre as obras de revitalização do São Francisco, o ministério do governo Michel Temer (PMDB) cita obras concluídas recentemente, como os sistemas de esgotamento de Cabrobó (PE) e Brasilândia de Minas (MG). E informa que há obras em andamento em cidades como Bocaiuva (MG) e Ilha das Flores (SE).

A Casa Civil da Presidência diz que o gasto total na revitalização, incluindo ações dos ministérios da Saúde, Cidades e Integração Nacional, atingiu R$ 88,6 milhões entre janeiro e julho deste ano. Em todo o ano 2016, o investimento chegou a R$ 312,4 milhões.

Os dados, contudo, não são disponibilizados em documentos oficiais como o balanço mensal do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), que deixou de ser publicado em julho de 2016. (Via: Folhapress)

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