A pastora Luana Sidnei tinha o
sonho da igreja própria. “Na verdade não um sonho: um chamado de Deus, que nos
deu um povo para cuidar”, diz sobre os cerca de 30 fiéis que reúne, em cadeiras
brancas de plástico, no térreo de um prédio de dois andares com a porta
metálica pichada (“Piratas Beko”), em São Miguel Paulista (zona leste de São
Paulo).
Mal sabia ela, quando inaugurou há dois anos seu Ministério da Providência
de Deus, o sufoco que passaria para prover todos os trâmites burocráticos
exigidos para o funcionamento de um templo religioso. A situação irregular de
sua denominação não é exceção, mas regra da maioria absoluta das igrejas
brasileiras.
Quantas existem? Na casa dos milhares, mas ninguém sabe precisar, já que a
pulverização de ministérios evangélicos é tamanha que não há órgão
governamental que concentre um dado confiável. Não ajuda a maioria deles não
possuir sequer um CNPJ.
Não é opcional ter um ou não. O artigo 44 do Código Civil determina que
organizações religiosas —como partidos políticos ou fundações, por exemplo —
sejam “pessoas jurídicas de direito privado” e sejam registradas como
tais.
Mas, no segmento, é comum escutar que mais de 95% das igrejas sejam
irregulares —número apontado em 2015 pelo Conselho de Pastores de São Paulo. E
ilegais não só pela ausência de CNPJ, mas também de obrigatoriedades como
alvará de licença emitido pelas prefeituras (sem ele, os templos perdem
direitos como a isenção do IPTU) e um laudo dos bombeiros (para averiguar
medidas de segurança como a presença de extintores).
“A realidade é assim: o pastor quer abrir igreja, aluga um salão, põe um
monte de cadeira e acha que é isso. Eles sabem pregar a palavra de Deus, ponto.
Não sabem como administrar, montar tesouraria”, diz a pastora Mônica
Santos.
TUDO TEM PREÇO: A colega de fé Luana acredita saber pregar, e bem, a palavra do Senhor, mas
confessa que prefere pagar R$ 298 por mês para cuidar da parte contábil de seu
ministério. É o que a empresa de Mônica, Igreja Simples, cobra para dar suporte
“administrativo e eclesiástico” a igrejas com até cem membros, diz a pastora—as
com até 300 fiéis desembolsam R$ 398, e acima disso, R$ 498.
Com cerca de mil clientes, inclusive sua própria igreja (Apostólica Templo
do Espírito Santo), Mônica não é a única de olho nesse filão. Mais companhias
administradas por "contadores cristãos" estão se especializando no
setor. Caso da Nogueira Consultoria, do pastor Paulo Cézar Nogueira, da igreja
Prostrado aos teus Pés (na zona norte paulistana).
A fatura é mais em conta para a clientela (R$ 120), cerca de cem
denominações. Para ele, nem sempre o status irregular se deve à ignorância do
líder religioso. “Eles vão lá e dizem: ‘Se a prefeitura fechou sua igreja, foi
o Diabo que agiu’. Não olham para a questão legal. Mas eles não só não têm
noção, muitas vezes não se importam. Se der algum problema, ligam para o
vereador tal e resolvem, principalmente em período eleitoral.”
Mas às vezes a ilegalidade custa caro. Em 2017, a demolição de uma
Assembleia de Deus próxima do Palácio do Jaburu gerou um arranco-rabo entre a
bancada evangélica no Congresso e o governador Rodrigo Rollemberg. O
deputado-pastor Marco Feliciano acusou Rollemberg de mandar derrubar o templo
“de forma criminosa, sem mandado judicial”, numa “atitude digna das piores
ditaduras”.
A presidente da Agência de Fiscalização do Distrito Federal, Bruna
Pinheiro, rebateu: evangélicos (como ela, aliás) “têm que ser os primeiros as
respeitar as leis”. A Assembleia de Deus tombada, afirmou, foi construída em
área pública e estava ilegal.
“Nós, pastores, precisamos principalmente atentar às palavras do Senhor
Jesus, quando nos ordenou que obedecêssemos a lei dos homens”, diz o portal da
brasiliense Ictus Contabilidade, do pastor David Efraim — que pôs a foto da
esposa e dos dois filhos no topo do site, para mostrar as credenciais de
“empresa de família”.
Para justificar a necessidade de regularizar, vale recorrer a versículos
bíblicos que pedem submissão às leis mundanas. Um deles: “Lembra-lhes que se
sujeitem aos que governam, às autoridades; sejam obedientes, estejam prontos
para toda boa obra”.
DOOU, LEVOU: Há questões que nem passam pela cabeça de quem decide abrir um templo, diz a
dona da Igreja Simples. Ela dá como exemplo o fiel que voluntariamente se
oferece para pintar um templo, e só pede para o pastor comprar tinta. “Aí ele
tem desavença, sai da igreja e pede vínculo empregatício.” A orientação, portanto,
é para que a pessoa sempre assine um termo de trabalho voluntário. O mesmo
serve para doações de móveis.
A pastora Luana, por exemplo, calcula ter investido R$ 10 mil para montar
seu ministério —dinheiro que recupera com dízimos, bazares e campanhas como o
Dia da Beleza (“a gente faz unha, escova no cabelo, limpeza de pele”).
Um alento: recebeu de graça cadeiras e púlpito. Aprendeu que pode perder
tudo, caso não faça o doador ratificar um documento dizendo que o bem agora é
da igreja.
Se a informalidade pode prejudicar o próprio segmento, também atrapalha os
dados oficiais sobre as casas que atendem 32% do Brasil, quinhão evangélico da
população, segundo o Datafolha.
A Prefeitura de São Paulo, por exemplo, não consegue especificar sequer
quantas igrejas em condições legais a cidade tem. Locais com lotação superior a
250 pessoas precisam ter um alvará emitido pela Secretaria
Municipal de Urbanismo e Licenciamento — só que a categoria também contempla
estabelecimentos como teatros, buffets e casas de show.
Uma busca pela palavra “igreja” no portal da secretaria mostra 58
cadastradas. A maioria são de gigantes da fé —só a Igreja Universal do Reino de
Deus possui 26 registros.
Templos para menos de 250 fiéis devem solicitar licença à pasta de
Prefeituras Regionais.
Como a maioria dos templos nanicos não se regularizou, é impossível saber
quantos há na maior cidade do país. Imagine a dificuldade de calcular o
total nacional, num país onde evangélicos multiplicam seus espaços de pregação
sem uma estrutura centralizadora a quem se reportar (como é o Vaticano para
católicos).
Em São Paulo, é possível denunciar igrejas irregulares por meio do canal
156. Por isso os pastores devem buscar confirmidade com a lei, diz Mônica, da
Igreja Simples. “Lutamos em defesa da igreja, para que ela não seja
lacrada." (Via: Folhapress)
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