Criada pelo jornalista carioca Antônio Callado, a expressão “indústria da seca” gera e perpetua distorções mais de meio século depois de ter sido citada pela primeira vez no extinto Correio da Manhã. Em algumas das 56 cidades pernambucanas em estado de emergência, as cisternas de polietileno distribuídas pelo Ministério da Integração Nacional – ação mais recente do governo federal para ajudar no convívio com a estiagem, a pior dos últimos 40 anos – não conseguiram aumentar a capacidade de armazenamento d’água, nem diminuíram a dependência das famílias em relação aos carros-pipa. Para ter o que beber, o sertanejo ainda arrasta o grilhão. Precisa enfrentar rateio, encher baldes e latas e carregá-los até o reservatório.
Conhecido como o Portal do Sertão, a 254 quilômetros do Recife, Arcoverde foi um dos municípios atendidos pelo primeiro lote de cisternas, no total de 60 mil unidades, conforme estimativa oficial. No Sítio Malhada II, a cerca de 700 metros da BR-232, cada família tem no quintal um reservatório capaz de guardar 16 mil litros. O suficiente para uma casa com cinco pessoas manter-se por seis meses sem rezar pela água da chuva. A novidade, porém, não alterou a rotina de dependência do carro-pipa. Os moradores recebem a ajuda do Exército uma vez por semana, quando o calendário é cumprido. A água não chega diretamente às residências. É depositada num reservatório maior, para só depois ser rateada por todos.
Escrito no muro num português tão triste quanto a seca, o aviso deixa claro como é a distribuição de água no Sítio Malhada II: “Atenção: só é para pegar 5 latas d’água de cada casa. E mais nada. Só de manhã”. A mensagem é uma ordem imposta a todos da localidade, onde residem 30 famílias, aproximadamente. Terça-feira, quando o JC visitou Arcoverde, cidade-polo da região, o quadro era ainda pior. O reservatório de 20 mil litros estava vazio. O pipeiro não apareceu, nem mandou satisfação. Aos poucos, o nível da água desceu até nada sobrar.
“O certo era o carro-pipa abastecer a cisterna de cada família. A gente não ia precisar ficar nesse aperreio. Quanto tem água para o sítio, cada família só pode ficar com cinco latas por dia. Quando não tem, o jeito é esperar a outra semana, e um ajuda o outro como pode. O que adianta ter uma cisterna daquele tamanho, se não tem água e ela vive vazia?”, questiona a dona de casa Maria da Penha Ferreira, 38. Nascida e criada em Arcoverde, vive sem esgotamento sanitário e água encanada e depende exclusivamente do carro-pipa. Os R$ 546,6 milhões gastos até agora pela Integração Nacional, no Água para Todos, não asseguraram dignidade plena aos moradores do Sítio Malhada II. O programa foi lançado na gestão do pernambucano Fernando Bezerra Coelho com ministro.
Em Arcoverde, os poucos privilegiados que têm água encanada, quando o carro-pipa falta, conseguem o que beber. Mas elevam o valor da fatura, num gasto que pesa no fim do mês. “Minha sogra não depende do pipeiro. Mas quando ele não vem, a conta dela aumenta. Dá uns R$ 60. Pode parecer pouco, mas não é. Faz três anos que a gente não tira nada da roça. Sobra o Bolsa Família”, conta a dona de casa Zeneide da Silva, 32.
DURABILIDADE - O governo federal escolheu financiar a entrega de cisternas de polietileno argumentando que são mais duráveis e de melhor qualidade do que as construídas de placa de concreto. Evitam a contaminação da água. A distribuição e instalação foram delegadas à Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (Codevasf), vinculada à Integração Nacional e à época presidida pelo irmão do então ministro, Clementino Coelho. A meta inicial era atender 750 mil famílias no Brasil até o fim do ano. Em Pernambuco, das 131 mil unidades, 97 mil já foram instaladas. (JC Online)
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