Antes de começar a ler este
texto, faça um teste. Entre em uma das plataformas de streaming e ouça algum
álbum do Quinteto Armorial. Ao mesmo tempo, leia os trechos do livro "O
Sedutor do Sertão" que estão logo abaixo.
O grupo musical é uma das faces do movimento armorial, criado por Ariano
Suassuna em 1970 e que pretendia fazer uma arte erudita a partir da cultura
popular. Já "O Sedutor do Sertão" é um romance inédito do autor,
escrito em 1966 como roteiro para um filme nunca produzido -- mas que agora
ganha a forma de livro, que chega às livrarias na próxima semana.
O casamento quase perfeito entre texto e melodia não é acaso ou mera captação
de um espírito da época. Ao contrário. É um movimento consciente de Suassuna,
que encarava sua produção artística como algo mais coeso do que um amontoado de
coisas.
Embora cada publicação (e, aí, levando em conta romances, poemas, peças e
até pinturas) possa ser vista de maneira independente, elas formam partes de um
mesmo quebra-cabeça ou, na definição do autor, de uma "ilumiara".
Essa unidade que forma uma certa obra total foi sendo lapidada ao longo
das décadas por Suassuna, conhecido por ajustar e reescrever constantemente
seus textos. Não à toa, na edição de 2004 de "A Pedra do Reino", por
exemplo, ele acrescentou João Grilo e Chicó na narrativa, personagens mais do
que célebres de "Auto da Compadecida".
O esforço teve um de seus ápices em 2013, um ano antes de sua morte. Na
época, o artista paraibano tinha sofrido um infarto agudo do miocárdio e reuniu
em sua casa o filho Manuel Dantas Suassuna e o professor da Universidade
Federal de Pernambuco Carlos Newton Junior.
"Foi duro. Ele passou a manhã inteira nos preparando sobre como
conduzir a obra dele depois que morresse", lembra Manuel.
Suassuna queria que toda a produção fosse reunida em uma única editora,
com o mesmo projeto gráfico. "Para que não fosse lançado só o que já era
sucesso de crítica, mas também os inéditos e os esgotados", conta Junior.
É nesse contexto que a Nova Fronteira republicou "Romance d'A Pedra
do Reino", considerada sua obra-prima. Em 2018, foi a vez de "Teatro
Completo", com 1.890 páginas e 12 textos inéditos.
É desse desdobramento também que chega às livrarias o romance "O
Sedutor do Sertão ou o Grande Golpe da Mulher e da Malvada". Escrito em
1966, enquanto produzia "A Pedra do Reino", ele não é só a base de um
roteiro cinematográfico nunca rodado.
A história traz Malaquias Pavão, ao mesmo tempo herói e um sedutor quase
mau-caráter, que surge em "A Pedra do Reino" como Malaquias Nicolau
Pavão Quaderna, um dos irmãos do narrador.
Como se passa anos antes dos fatos de "A Pedra", o novo romance
pode ser visto como um prelúdio da famosa trama --ou outra das peças que formam
a "ilumiara" do autor.
Recheado do humor de Suassuna, a edição de "O Sedutor do Sertão" é
costurada por cerca de 50 ilustrações feitas por Manuel Dantas Suassuna.
"Fiz tudo em quatro dias", diz.
Segundo o filho do artista, ele partiu das ideias do movimento armorial e das xilogravuras de Gilvan Samico, artista morto em 2013, para produzir os desenhos pincelados a nanquim. "Não tenho mais tempo de fazer matriz de xilogravura", brinca.
"Conversava muito com papai sobre o que seria uma pintura brasileira.
Então peguei a xilogravura, a pintura rupestre, o grafismo africano e juntei
com os ferros do movimento armorial", completa.
Se "O Sedutor" é uma peça do quebra-cabeça de Suassuna, ela não
forma somente a obra total do autor --também ajuda a dar contornos à trajetória
familiar do artista e até à história do Brasil.
O romance tem como pano de fundo o ano de 1930 na Paraíba, quando
sertanejos se revoltaram contra o governador, João Pessoa --instabilidade política
que acabaria com o assassinato do político e o golpe que levou Getúlio Vargas à
Presidência.
Pois o pai de Ariano e avô de Manuel, João Suassuna, havia sido governador
da Paraíba anos antes e era adversário político de João Pessoa. Ao descobrirem
que o assassino de Pessoa era João Dantas, primo da mulher de João Suassuna, o
pai de Ariano se tornou suspeito de ter sido cúmplice do crime --e foi morto a
tiros três meses depois.
Ariano tinha três anos na época. Por isso, nunca chamou a capital
paraibana de João Pessoa, por exemplo, nome que a cidade recebeu após a morte
do ex-governador.
O impacto familiar fez ainda com que esse caldo político de 1930
aparecesse aqui e ali na "ilumiara" de Suassuna. A ponto de ele
dizer que abandonou a ideia de transformar "A Pedra do Reino" em
uma trilogia porque já não conseguia se distanciar do narrador, Pedro Dinis
Quaderna, principalmente em relação aos fatos da Revolução de 1930.
"Era uma briga política que se tornou pessoal", diz Manuel, que
planeja lançar um livro sobre 1930 com histórias da família e uma carta do avô
escrita na época, na qual ele nega que tenha participação na morte de João
Pessoa.
Enquanto o título não sai, a obra de Suassuna dá um tratamento ficcional
para o caso.
Para o segundo semestre, está previsto o lançamento da poesia completa do
autor. "Ele surgiu como poeta na década de 1940, mas seus poemas foram
pouco conhecidos", conta o professor Carlos Newton Junior, que hoje faz a
organização dos escritos e da biblioteca do artista.
Além da poesia, será publicado no ano que vem outro romance inédito:
"As Infâncias de Quaderna", que já havia saído em fascículos no
Diário de Pernambuco, mas nunca foi reunido em uma edição.
"Que eu saiba, existe só mais um romance inédito, mas incompleto: 'A
Guerra de Doze'. Mas nunca encontrei", afirma Junior.
Além das novas edições, o autor também inspirou o recém-criado Instituto Ariano Suassuna, que pretende promover estudos, publicar livros, digitalizar o acervo, organizar mostras e abrir a casa dele, no Recife, para visitação.
"É uma maneira de ficar perto depois do 'encantamento' dele",
fala Manuel, que não diz que o pai morreu. "É como dizia o Guimarães Rosa:
a pessoa não morre, se encanta."
Ou como o próprio Suassuna disse certa vez: a arte é uma espécie de
protesto contra a morte. Se for isso mesmo, a sua "ilumiara" é um
protesto que segue vivo. (Via: Folhapress)
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