Na adolescência, o empresário brasiliense
Luiz Estevão de Oliveira Neto queria ser físico. Dono de uma inteligência acima
da média, passou em primeiro lugar no vestibular e chegou a cursar algumas
disciplinas, mas abandonou a universidade para se dedicar ao automobilismo.
Como piloto, não se deu muito bem, porém acabou, indiretamente, impulsionando a
carreira de um de seus mecânicos da época, o tricampeão de Fórmula 1 Nelson
Piquet, amigo dele até hoje. O maior talento de “Escovão”, como os colegas o
chamavam, era mesmo fazer negócios — e ele fez inúmeros, que lhe renderam uma
fortuna estimada por ele mesmo em 10 bilhões de reais e 26 anos de cadeia. Em
1998, já bilionário, Estevão elegeu-se senador, o primeiro da história a ser
cassado, sob a acusação de ter desviado 169 milhões de reais da obra do TRT de
São Paulo. Depois disso, foi condenado por corrupção e tornou-se o primeiro
figurão a ser preso após uma decisão de segunda instância.
Após três anos em
regime fechado, o ex-senador, de 70 anos, está cumprindo pena em regime
semiaberto, ou seja, trabalha durante o dia e dorme na prisão. Nesta entrevista
a VEJA, concedida num escritório imobiliário no centro de Brasília, ele fala da
rotina na penitenciária da Papuda, onde conviveu com condenados da Lava-Jato e
do mensalão, explica de maneira crua como funciona a engrenagem da corrupção no
país, tece elogios ao ministro Sergio Moro e ainda confirma que reformou
clandestinamente o presídio a pedido de Márcio Thomaz Bastos (morto em 2014),
ex-ministro da Justiça.
Qual o status do senhor hoje?
Fui
condenado a 25 anos de prisão por peculato, estelionato e corrupção. Estou
cumprindo pena no regime semiaberto, o que me credencia a trabalhar todo dia.
Saio da Papuda às 7 da manhã e volto às 21 horas. Durante o dia, de segunda a
sábado, sou obrigado a ficar aqui na imobiliária. Vendo e alugo imóveis
pessoalmente, oriento os corretores. Posso ver minha família a cada quinze
dias, na chamada “saidinha”, que é quando o preso tem o direito de passar um
fim de semana em casa. Essa situação deve perdurar até o fim de 2020, aí passo
para o aberto. Pelo lado financeiro, meus bens continuam bloqueados pela
Justiça, eu devia quase 800 milhões de reais do dinheiro que me acusam de ter
desviado e me cobram uns 2 bilhões em impostos.
Empresários apanhados em casos de corrupção costumam se
apresentar como vítimas de achaque?
O
empresário não é vítima. Digamos que ele torce para ser vítima, torce para ser
chamado para uma “conversinha”. Quando recebe um convite para uma
“conversinha”, ele não sai chorando da sala, sai soltando foguetes. Qualquer
personagem do mundo da corrupção, não é episódico, aprendeu um modus vivendi,
aprendeu uma maneira de ganhar dinheiro. Nesse submundo, não há inocentes.
Quando surge uma obra, o cara do órgão público, que representa um político ou
um grupo político, indica um operador. E aí se inicia um processo que não tem
limites, em que todos passam a ganhar.
Como assim?
O tal
operador aparece e diz que precisa de dinheiro para financiar campanhas
políticas. Ou seja, arruma uma desculpa moral para a extorsão. Ele nunca diz
que parte daquele dinheiro é também para comprar uma casa na Côte d’Azur ou em
Miami. O empresário, por sua vez, argumenta que, para pagar a propina
solicitada, tem de emitir nota fiscal, tem impostos a saldar e precisa criar
toda uma estrutura para tirar a propina do caixa da empresa — e recebe o sinal
verde para ajustar seus custos. Nesse momento, está rompido o equilíbrio que
deveria existir entre contratante e contratado. O empresário e o agente público
ficam do mesmo lado. Aí, meu amigo, o céu é o limite. Uma obra que deveria
custar 50 pula para 80, 100, 120. Essa foi a regra durante muitos e muitos anos.
Foi esse o mecanismo usado na fraude do TRT de São Paulo que
resultou em sua condenação e na cassação de seu mandato?
Com
certeza, não tenha dúvida. Mas não sou personagem principal desse esquema de
corrupção. Fui beneficiário da situação, o que é diferente. Saí da sociedade
quatro dias antes da licitação, quando percebi que meus sócios estavam ganhando
muito dinheiro. Não estou dizendo que sou inocente. Sim, tirei proveito de
alguma maneira, fiz negócios lucrativos, mas não fui agente direto desse
esquema. Eu não era o responsável pela obra. No Senado, era também muito
conveniente me cassar naquele momento. O mensalão e a Lava-Jato, mais tarde,
revelaram as entranhas da política no Brasil.
Como é a rotina de um bilionário na cadeia?
O
drama maior não é a perda de conforto. O drama é a privação da liberdade. Você
dorme numa cama menos confortável, contorna o fato de ter de conviver 24 horas
por dia com um grupo de pessoas com as quais não tem nenhuma afinidade, nunca
tinha visto antes, e direciona seu foco para coisas produtivas, principalmente
a leitura. Foi o que fiz nesses três anos: li muito, mais de 500 livros, e estudei
muito.
Várias vezes se noticiou que o senhor tinha uma série de
privilégios no presídio…
Nunca
tive privilégio nenhum. O que há é o seguinte: eu tinha conhecimento dos meus
direitos, e cobrava. Por exemplo, a Lei de Execução Penal diz que o preso tem
direito a continuar exercendo suas atividades culturais uma vez que ele esteja
na cadeia. Então, quis receber meus livros, quis receber visitas. Não há
mordomias. A comida é a mesma quentinha de todos os presos. O máximo é fazer o
que chamamos de um “melhorado”, adicionando um tempero, um molho, para dar um
pouco mais de sabor. Para malhar, usava garrafas de produtos de limpeza: enchia
de água, amarrava a ponta e improvisava como haltere.
Mas, antes de ser preso, o senhor reformou as celas do pavilhão?
É
verdade. Mas não foi para mim. Foi para o pessoal do mensalão. Na época, atendi
a um pedido do doutor Márcio Thomaz Bastos, que foi ministro da Justiça no
governo Lula. Eu conhecia o doutor Márcio havia muitos anos. Um dia, ele me
telefonou e convidou para um almoço em São Paulo. Lá, disse assim: “Olha,
Estevão, estou muito preocupado porque, você sabe, o nosso pessoal vai ser
condenado mesmo, e o sistema prisional de Brasília não tem condição de abrigar
essas pessoas. O governador lá é o Agnelo, é do PT, tenho boas relações com ele
e preciso que alguém toque uma obra de reforma no presídio para deixar essas
pessoas distantes do convívio da massa carcerária. Você poderia cuidar disso
pra mim?”. Eu respondi que sim.
O ministro da Justiça lhe pediu que executasse uma obra
clandestina?
Pediu.
Era um trabalho simples. Na época, mandei minha equipe lá, fizemos o orçamento
e apresentamos ao ministro. Nós transformamos em celas um depósito abandonado
que ficava no complexo da Papuda.
E quem pagou por essa obra?
Eu
apresentava as notas fiscais das despesas, e o ministro pessoalmente me
reembolsava. Não gastei nada do meu bolso. Foi tudo pago pelo doutor Márcio, um
total de 800 000 reais. Eu chegava lá no escritório dele em São Paulo,
apresentava os comprovantes, e ele me pagava em dinheiro. Umas poucas vezes, o
pagamento se deu por transferência bancária. Mas repito: a reforma não foi para
mim. Se você me perguntar se em 2012, quando essa obra foi feita, eu esperava
ser preso, a resposta é não.
Como foi a convivência na prisão com os condenados do mensalão e
da Lava-Jato?
Conheci
o Zé Dirceu (ex-ministro do governo Lula, condenado por corrupção), o Geddel
(Vieira Lima, ex-ministro do governo Temer, condenado por corrupção), o Rocha
Loures (ex-assessor do presidente Temer, acusado de corrupção) e outros. Eu e
Zé Dirceu dividimos a mesma cela, dormimos na mesma cela, tivemos uma
convivência extremamente boa. Ele não reclama de nada, não se queixa de nada,
nunca o vi se lamentando, o que também é o meu perfil. Já o Geddel chorava
muito. Aliás, não apenas ele. Estive com o Henrique Pizzolato (petista,
condenado no mensalão), com o Ramon Hollerbach (publicitário, condenado no
mensalão). Muitos deles enfrentaram situações de profunda depressão, a ponto de
eu chegar e dizer: “Você não vai tomar remédio agora não. Seu remédio vai ficar
comigo, e eu vou lhe dar todo dia a dose certa”. Com que autoridade eu fazia
isso? Nenhuma. Mas pensava: “Esse cara um dia vai se matar”. Havia uma
preocupação muito grande com a possibilidade de suicídio de alguns desses
presos do mensalão e da Lava-Jato.
Há diferença entre um preso comum e um detento bilionário?
No
geral, nenhuma. Fiquei 1 200 dias preso em regime fechado. É uma tragédia para
qualquer pessoa. Fazia um risquinho no calendário todos os dias. Talvez a
diferença seja que você recebe muitos pedidos e acaba se sensibilizando com a
situação de precariedade de algumas pessoas. A reação natural é procurar
ajudar. Então fui advertido: “Olha, isso aí pode configurar um problema, porque
ninguém pode exercer o papel de liderança na cadeia”. Depois disso, a única
coisa que fiz, e com a autorização da juíza, foi arrumar emprego para parentes
de presos nas empresas da minha família.
Seu caso provocou a mudança de entendimento do Supremo, em 2016,
sobre a possibilidade de prisão após a condenação em segunda instância, que
acabou revogada no ano passado…
Na
época, achava que a decisão do STF foi um casuísmo para me prender. Hoje, vejo
a prisão após a condenação em segunda instância como uma necessidade. Ao
contrário do que se diz, ela não é maléfica para o réu. O índice de reforma de
sentenças no STJ e no STF é muito pequeno. O réu fica na ilusão de que ele tem
quatro instâncias, mas, na prática, só procrastina a execução da pena.
Inexplicavelmente, o Supremo recuou no ano passado. Alguns ministros,
provavelmente, perceberam que a prisão em segunda instância criava um cenário
que não era do agrado deles.
O senhor acompanhou o desdobramento da Operação Lava-Jato de
dentro da cadeia?
Claro,
eu tinha uma televisão e acesso a jornais e revistas. A corrupção é uma
pandemia universal. O que muda são as facilidades para corromper. O que valia
antes da Lava-Jato não era a meritocracia, a empresa ter condições de fazer uma
obra de qualidade, ser competitiva. O que valia era seguir aquela cartilha de
corrupção sobre a qual já falei. O que o juiz Sergio Moro fez em benefício do Brasil
ainda não foi dimensionado corretamente. Ele revolucionou o país. Agora, vejo
um esforço gigantesco para derrubar os instrumentos que permitiram frear a
bandalheira — delação premiada, prisão em segunda instância, essa coisa toda —,
mas acho que ninguém vai conseguir. Ele deu um basta, provocou um tsunami que
atingiu em cheio esse submundo que conheço bem. A roubalheira diminuiu muito,
porque as pessoas agora têm medo da prisão. A corrupção passou a ser um caminho
perigoso. (Via: VEJA - Por Amarelas, edição nº 2676)
Blog: O Povo com a Notícia