POR ANTÔNIO CARLOS DE ALMEIDA CASTRO (KAKAY)
“Arre, estou farto dos semideuses! Onde é que há gente no mundo?”
Fernando Pessoa.
Sobre a falsa polêmica criada por uma frase minha em um grupo de
WhatsApp, referente a uma esdrúxula proposta de política pública formulada pela
ministra Damares, julgo necessário fazer breves considerações. Em um Estado que
se pretende democrático, o direito de criticar a postura e os atos de pessoas
públicas é a base para o fortalecimento da sociedade.
Quero
que fique bastante claro: em nenhum momento, eu ofendi a ministra Damares.
Apenas registrei aquilo que realmente considero acerca das proposições
políticas por ela expostas. Ao dizer “idiota”, faço referência específica à sua
proposta de campanha pública voltada aos adolescentes que prega a abstinência
sexual como forma de enfrentar a gravidez precoce e de combater a transmissão
de doenças sexualmente transmissíveis.
Talvez a ministra desconheça o significado da palavra “idiota”, que,
segundo diversos dicionários, é algo que não tem bom senso, não tem discernimento,
tolo ou não apresenta nexo. Nesse ponto, basta procurar na grande mídia as
frases que caracterizam as políticas públicas apresentadas pela ministra. É
perceptível que tais veículos retratam tais atos de forma jocosa.
O linguista Gustavo Conde, ao falar sobre o pronunciamento dessa Senhora
sobre a vagina de uma menina de 12 anos, disse que a frase era uma
monstruosidade: “repulsiva e monstruosa”. E vai além, “a fala de
Damares não é uma aberração. É um crime”.
Para mim, subir numa goiabeira para receber um abraço de Jesus, ou
dizer, sendo ela uma ministra de Estado, figura pública, que meninos devem
vestir azul e meninas, rosa, ou ir contra o Estado laico, ou dizer que os
meninos devem ser tratados diferentemente das meninas, ou acusar o movimento LGBT
de ter instalado uma “ditadura gay” no Brasil e tantos outros pronunciamentos
deixam absolutamente incontestável que as propostas da ministra são desprovidas
de bom senso e de discernimento. Talvez por isso ela tenha sido formalmente
denunciada na ONU por “intervenção e censura” ao Conselho Nacional de Direitos
Humanos.
Uma ministra que tem poderes de ditar regras e estabelecer diretrizes de
políticas públicas, na minha visão, não pode ter a abstinência sexual como
programa de governo.
Ressalto, aqui, valorosa recomendação da Defensoria Pública da União e
da Defensoria Pública de São Paulo, na qual apontam que pregar abstinência como
“política pública para prevenção não tem nenhum suporte científico” e
que a “medida traz risco de desinformação aos jovens ao não privilegiar a
adequada orientação quanto ao uso de métodos reconhecidamente eficazes”.
O Papa Francisco, com sua sabedoria única, defendeu inclusive que as
escolas devem, sim, ensinar educação sexual, ressaltando que esse é o melhor
caminho para resolver o problema da gravidez precoce.
Por isso, fiz a irônica observação crítica no sentido de que, se
tivessem seguido a orientação da ministra sobre a abstinência sexual, nós
estaríamos livres de ouvir e de ler tantas sandices. Usei a palavra “trepar”,
que talvez choque ouvidos puritanos, mas, na vida real, é assim: as pessoas
trepam.
E todo cidadão tem o direito de criticar a postura, as falas, os
discursos de uma pessoa pública. O Político tem que saber que, numa democracia,
ele será questionado e criticado, com uma natural veemência que deve e pode
ocorrer quando são interpeladas políticas públicas que julgamos equivocadas.
Nem foi o caso da minha frase sobre a ministra, que não considero em nenhum
momento ofensiva ou descontextualizada.
Em recente e brilhante parecer, oportuno e que parece ter sido escrito
sobre esta falsa polêmica, os professores Ademar Borges e Daniel Sarmento
escrevem acerca da liberdade de expressão e dos crimes contra a honra de
pessoas públicas. Preceituam os renomados professores:
A Constituição de 88 é até repetitiva na garantia da liberdade de
expressão, consagrando-a nos incisos IV e IX do seu artigo 5º, e ainda no seu
artigo 220, caput. A redundância não é gratuita. Ela se deve,
acima de tudo, à importância central atribuída pelo poder constituinte
originário a tal direito fundamental, na linha do que ocorre em praticamente
todos os Estados democráticos contemporâneos.
Essa ênfase deriva de várias razões. Há, em primeiro lugar, a dimensão
histórica: a Carta de 88 pretendeu romper com o passado nacional de
autoritarismo e instaurar uma nova ordem fundada sobre valores humanistas e
democráticos. Com efeito, uma das características mais nefastas do regime
militar era precisamente o desprezo à liberdade de expressão. A imprensa, os
críticos do governo e os artistas eram frequentemente censurados ou punidos por
suas manifestações e ideias. Pessoas eram presas ou exiladas — quando não
torturadas e até assassinadas por agentes da repressão — em razão das ideias que
ousavam defender. O constituinte, reagindo contra tal histórico vergonhoso,
quis assegurar que esses graves erros do passado nunca mais se repetissem.
Nesse contexto, eles apontam que “a liberdade de expressão não
salvaguarda apenas manifestações suaves, polidas, gentis. Pelo contrário, o
direito abarca a liberdade de criticar, mesmo em tom duro, jocoso, áspero ou
até impiedoso, especialmente as autoridades e pessoas públicas”.
A seguinte frase da ministra Rosa Weber é cirúrgica: “O regime
democrático, contudo, não tolera a imposição de ônus excessivo a indivíduos ou
órgãos de imprensa que se proponham a emitir publicamente opiniões, avaliações
ou críticas sobre a atuação de agentes públicos. Os riscos envolvidos no
exercício da livre expressão, em tais hipóteses, não podem ser tais que
apresentem permanente e elevado potencial de sacrifício pessoal como
decorrência da exteriorização de manifestações do pensamento relacionadas a
assuntos de interesse público, real ou aparente (…) O ônus social é enorme e o
prejuízo à cidadania manifesto.”
Ainda sobre o assunto, os mencionados professores trazem à baila
importantes decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos que têm
apontado a “ilegitimidade de condenações criminais por crimes
contra a honra, de pessoas que tenham expressado opiniões fortemente críticas a
respeito de assuntos de interesse público ou de autoridades públicas, por
violação ao direito à liberdade de expressão”.
Por fim, reafirmando que não ofendi em absoluto a senhora ministra,
reitero minha absoluta crença na liberdade de expressão, de crítica e na
necessidade de discutirmos de forma direta e aberta os despautérios
patrocinados por agentes públicos. (Publicado originalmente pelo ConJur)
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