A brasiliense Júlia Oliveira Sena, 22 anos, teve uma infância cheia de privações. Diagnosticada com anemia falciforme aos 2 anos de idade, a menina não podia brincar de correr na rua ou na escola, nem tomar banho de piscina ou de chuva, e passou por incontáveis internações para tratar as consequências da doença.
A condição, que não foi apontada no teste do pezinho, só foi descoberta porque os pais de Julia investigaram o choro intenso da filha, que reclamava de dor com frequência.
Aos 3 anos de idade, Julia teve a primeira pneumonia grave. Ela foi internada em uma unidade de terapia intensiva (UTI), onde teve uma parada respiratória e edema pulmonar. Daí para a frente, a situação só se agravou.
O ano de 2019 foi o pior para a jovem, que foi internada 12 vezes. “Eu ia praticamente todos os meses para o hospital. O meu pulmão foi o mais afetado pela anemia falciforme e, por isso, tive 13 pneumonias ao longo da vida”, lembra.
O sofrimento acabou quando Julia tinha 19 anos e passou por um transplante para receber a medula óssea da irmã Laura, na época com 11 anos.
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Anemia falciforme
A anemia falciforme é uma doença hereditária. Ela é caracterizada pela produção de glóbulos vermelhos anormais que, em determinadas condições de estresse, mudam de forma e causam o bloqueio de alguns vasos sanguíneos, levando a uma série de complicações. As principais delas são dor e queda da imunidade.
“São crises de dor que acontecem em várias partes do corpo e que podem deixar sequelas, a depender do nível de obstrução”, explica a onco-hematologista Andresa Melo, médica do Hospital Brasília, da rede Dasa no DF.
No caso de Julia, nem os medicamentos ajudavam mais com as crises de dor. “É difícil explicar para as pessoas que você está com dor. Em crises mais fortes, eu não conseguia pisar no chão, minha perna falhava e eu precisava ser carregada. Eu sentia uma espécie de dor no osso, com alguma coisa pressionando o osso com várias pontadas”, detalha.
De acordo com a médica, os pacientes também podem sofrer tromboembolismo pulmonar, acidente vascular isquêmico, infarto ósseo e osteonecrose ainda na infância por causa da doença. Com o passar dos anos, alguns órgãos vitais, como coração, pulmão e rim, podem sofrer complicações crônicas, culminando em uma expectativa de vida mais curta do que a do restante da população.
As alterações dos glóbulos vermelhos também causam a destruição mais rápida das células (hemólise), o que leva a um quadro de anemia grave. Por isso, os pacientes acabam precisando de inúmeras transfusões de sangue ao longo da vida.
Além disso, eles correm um risco maior de se tornarem imunossuprimidos e acabam ficando mais expostos a infecções. “É muito comum que esses pacientes precisem de internação para tratar as complicações relacionadas à crise de hemólise ou infecções e têm a qualidade de vida muito prejudicada”, afirma Andresa.
Por anos, a família de Julia fez o possível para blindar a menina de gripes e resfriados. A brasiliense não podia correr o risco de pegar chuva e precisava estar sempre muito bem agasalhada para não pegar friagem.
“Foi uma infância muito regrada e limitada. Eu não podia tomar banho de piscina ou tomar bebidas geladas porque tinha a imunidade mais baixa. Tudo isso podia me causar uma gripe que logo piorava, virava uma infecção, vinham as crises de dor e eu acabava internada”, conta a jovem. Em 2019, a gravidade do quadro de Julia a colocou como uma forte candidata ao transplante de medula óssea.
Transplante de medula óssea
O transplante é a única forma de curar o paciente. Ele substitui a medula óssea doente – que produz glóbulos vermelhos alterados – por uma medula saudável, que vai fabricar um sangue completamente normal.
Para fazer o transplante, o paciente precisa preencher alguns dos critérios de indicação, incluindo:
Ter crises de dor de difícil controle mesmo com tratamento;
Histórico de síndrome torácica aguda, uma complicação relacionada a infecções e infarto pulmonar;
Ter sequela por AVC;
Surgimento de aloanticorpos pelas múltiplas transfusões feitas ao longo da vida.
“O transplante precisa ser indicado com muito cuidado porque ele é um tratamento que envolve uma toxicidade alta durante a internação e um risco considerável de mortalidade”, pondera a médica.
Esses riscos foram avaliados com cuidado por Julia, que estava relutante ao transplante até poucos dias antes do procedimento.
“Eu tinha muito medo e tentei entender o que pesava mais: era melhor continuar com a doença ou me arriscar com o transplante? Também tinha medo de envolver a minha irmã e de não ter a chance de ser mãe no futuro. Precisei ter uma maturidade muito grande para entender se eu queria passar por uma coleta de óvulos tão nova para me resguardar. Eu não queria, mas os meus pais e a terapia me ajudaram muito”, relata.
Irmãos do mesmo pai e mãe são os doadores considerados ideais para um transplante de medula óssea porque tendem a ser os mais compatíveis com a pessoa doente. No caso de não ter um irmão, pode-se tentar outro membro da família que seja parcialmente compatível (doador haploidêntico), como um pai e filho.
Um teste de compatibilidade mostrou que a irmã de Julia era 100% compatível, mas a menina tinha apenas 7 anos e a família precisou esperar que Laura fizesse 11 anos para que a doação fosse segura.
A onco-hematologista explica que a fonte de células para esse tipo de transplante é a própria medula óssea. A quantidade de material colhida é calculada de acordo com o peso do paciente.
“Uma diferença muito grande de peso entre paciente e doador pode ser um problema porque não é possível tirar tanto líquido de uma pessoa muito pequena. Como a Julia já tinha o corpo de mulher adulta e a irmã era muito pequenininha, precisamos fazer duas coletas da Laura para alcançar a quantidade necessária para o transplante”, afirma Andresa.
As duas coletas foram feitas com um intervalo de seis meses para poupar Laura e não correr o risco de tirar um volume muito grande de sangue junto com a medula. Julia foi internada no final de dezembro e recebeu a medula em 3 de janeiro de 2022. Ela recebeu alta 28 dias após o procedimento.
Hoje, a jovem leva uma vida normal, com muito mais qualidade de vida. “Não sei mais o que é sentir dor, que era o que mais me impedia de viver. Quase não tenho mais motivos para ir ao hospital, apenas para fazer acompanhamento médico”, conta.
O frio não é mais um temor para a brasiliense, que até já tomou banho de chuva depois do transplante. “Sempre que chegava a época do frio, eu tinha crises e era internada. Hoje, não preciso mais sair toda empacotada”, brinca. (Via: Metrópoles)