Polêmica desde o seu lançamento, a
transposição do Rio São Francisco coleciona alguns recordes — nada positivos,
por sinal. A previsão atualizada de custo de 12 bilhões de reais a coloca como
uma das obras mais caras da história do país. É também o único caso em que três
presidentes inauguraram um mesmo trecho. Sim, só no Brasil. Em março de 2017,
Michel Temer, na época à frente do Palácio do Planalto, protagonizou a
cerimônia oficial em Monteiro, no Cariri paraibano, ponto final do Eixo Leste,
estrutura de 217 quilômetros que perpassa Pernambuco e Paraíba. Nove dias
depois, Lula (ainda solto) e Dilma Rousseff desembarcaram naquela cidade para a
“inauguração popular” da menina dos olhos do PAC petista.
Após
mais de dois anos, os políticos sumiram e não há motivos para festa. Os mesmos
canais não recebem água e apresentam vários danos sérios. Nos dias 21 e 22 de
julho, um perito do Ministério Público Federal da Paraíba vistoriou cerca de 40
quilômetros entre Sertânia (PE) e Monteiro. No relatório, ele aponta uma série
de problemas. O revestimento de concreto tem fissuras, trincas e rachaduras que
chegam a mais de 1,5 centímetro de espessura. Como faltam estruturas de
drenagem, as chuvas levam a areia para o fundo, assoreando muitos trechos do
curso d’água. Obras de drenagem estão com paredes quebradas, comprometidas por
erosão, e algumas canaletas são quase invisíveis, cobertas por terra e
pedregulhos. Há também mato dentro do canal.
O
trabalho realizado de forma apressada gerou os problemas. Ex-chefe da
assessoria técnica ao governo para o projeto da transposição, Francisco Jácome
Sarmento afirma que a execução da obra nos meses anteriores à inauguração focou
somente fazer a água chegar, sem levar em conta serviços auxiliares como
drenagem, proteção de taludes e instalação de comportas. “O que está lá é tão
precário que bastou um curto período de meses de funcionamento para que as
improvisações impusessem uma drástica redução na vazão transferida até
anulá-la”, diz.
Atual
responsável pelo projeto, o Ministério do Desenvolvimento Regional, em nota
enviada a VEJA, diz que o Eixo Leste ainda está em fase de “pré-operação” (só
no Brasil: passados mais de dois anos da inauguração, o negócio encontra-se em
“testes”). O bombeamento de água para 44 municípios da Paraíba está
interrompido há cinco meses, em razão da necessidade de manutenção em
equipamentos das estações em uma adutora em Pernambuco. Em 2018, quando o
sistema funcionava, ele se mostrou fundamental para evitar uma crise de
abastecimento em meio a um prolongado período de seca. Com os problemas atuais,
a água não tem chegado aos açudes. “Se não fizerem nada, vai ser o caos”,
alerta Eden Duarte, prefeito de Sumé (PB). Lideranças políticas da região
organizam uma manifestação em Monteiro para o dia 1º de setembro com os motes
“SOS Transposição” e “Grito do Nordeste”. Em municípios pernambucanos, o abastecimento
também foi interrompido entre julho e agosto por falta de bombeamento.
Fora
as dificuldades para levar água até onde o projeto prevê, a transposição do São
Francisco não foge à regra de todas as grandes obras brasileiras: multiplicação
de orçamento, superfaturamento, eternização de prazos, abandono por
construtoras e decisões judiciais contrárias à execução. O custo total dos dois
eixos da transposição, Norte e Leste, foi estimado em 2007 em cerca de
5 bilhões de reais. Neste ano, o Ministério do Desenvolvimento Regional
calcula o valor final em 12 bilhões de reais. Ou seja, mais de duas vezes o
orçamento inicial. No relatório mais recente da Controladoria-Geral da União
sobre a gestão da obra, o órgão detectou, em apenas um contrato do Eixo Leste,
de 841,8 milhões de reais, que a soma de superfaturamento e sobrepreço alcançou
35,7 milhões de reais. O cronograma original do PAC previa a conclusão do Eixo
Norte em dezembro de 2012. Em 2016, o Tribunal Regional Federal da 1ª Região
(TRF1) chegou a suspender as obras, decisão revertida pelo Superior Tribunal de
Justiça (STJ) em abril de 2019. Com 260 quilômetros de extensão, passando por
Pernambuco, Paraíba, Ceará e Rio Grande do Norte, o Eixo Norte tem 97% das
obras concluídas, segundo o Ministério do Desenvolvimento Regional, que espera
começar o transporte de água ainda neste segundo semestre.
Em
meio aos problemas, o governo Jair Bolsonaro se move para conceder a efetiva
operação do sistema à iniciativa privada — decretos das gestões Lula e Dilma
atribuíam à estatal Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e
do Parnaíba (Codevasf) esse papel. Há duas semanas, o presidente assinou um
novo decreto, qualificando o projeto como “obra estratégica” no Programa de
Parcerias e Investimentos (PPI). Na mesma ordem, determinou que o Ministério de
Minas e Energia elabore uma proposta de leilão de geração de energia solar para
reduzir os custos dos sistemas de bombeamento — estimados pela CGU em até 800
milhões de reais anuais. O BNDES também estuda um modelo de parceria
público-privada.
A
ideia de levar a água do Velho Chico até as regiões do Nordeste atingidas por
secas prolongadas é cogitada desde a época de dom Pedro II, no Segundo Reinado,
no século XIX. Tirada do papel mais de 100 anos depois, ela não trouxe ainda as
soluções esperadas. Pior: corre sério risco de virar o grande elefante branco
do Sertão. (Via: veja)
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