Michel Temer enviará ao Congresso
proposta que prevê o arrendamento de terras indígenas para produtores rurais,
informou o ministro Torquato Jardim (Justiça). Trata-se de uma reivindicação da
bancada de parlamentares ruralistas. Imaginava-se que o presidente houvesse
abandonado a ideia, duramente criticada por movimentos indígenas e ambientalistas.
Mas Torquato sustenta: “Vai para o Congresso.” Segundo ele, falta resolver uma
pendência: “Pode ser projeto de lei ou medida provisória.”
A pasta da Justiça preparou uma publicação sobre as atividades
desenvolvidas neste ano e os planos para o próximo exercício. Chama-se
''Informativo 2017/2018.'' No trecho relativo à “questão indígena”, anotou-se
que o ministério tem como meta abrir um “espaço para o diálogo”. Por isso,
realiza uma “busca por soluções inovadoras que beneficiem tanto as comunidades
indígenas quanto a produção agrícola brasileira.” É nesse contexto que está
inserido o arrendamento.
Torquato declarou que há cinco tipos de índios no Brasil: “Há o índio que
você acha que existe, mas só encontra sinais; há o que você recém-conheceu; há
o que já convive; há o urbanizado; e há o índio-empresário.” De acordo com o
ministro, “o índio-empresário aceita a ideia do arredamento. Então, ele arrenda
a terra para o branco e vive da receita do arrendamento.” O que se pretende,
disse Torquato, é regularizar algo que “já acontece”. Há obstáculos legais a
transpor.
Manuseando um exemplar da Constituição, Torquato foi ao parágrafo 2º do
artigo 231. Ele leu em voz alta: “As terras tradicionalmente ocupadas pelos
índios destinam-se à sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo
das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”
Segundo o ministro, “o termo ‘exclusivo'' fez com que fosse absorvido pelo
texto da Constituição de 1988 o Estatuto do Índio, que é uma lei de 1973.”
Torquato admite: “Esse estatuto de 73 diz que é expressamente proibido o
arrendamento.” Mas pondera: “Existe uma situação fática: o arrendamento já é
uma realidade em alguns lugares da região Sul.”
Torquato prossegue: “Tem problemas, porque nem sempre há democracia interna
na etnia. O cacique Alfa põe o dinheiro recebido no bolso e distribui para quem
ele quiser. Quanto aos caciques Delta, Gama e Beta ou eles se submetem e ficam
sem nada ou brigam e vão embora. Aí vão para uma beira de estrada federal, vão
ocupar um ginásio ou uma escola num município. Isso cria problema.”
Ainda de acordo com o ministro, os órgãos públicos lidam com o “problema”
de forma errática. “Em aguns lugares, inspetores da Funai proíbem o
arrendamento. Retiram os brancos. Em alguns casos, o Ministério Público Federal
processa, em outros não processa. Cada um reage de maneira diferente.”
O que fazer? “Imaginou-se uma medida provisória ou um projeto de lei que
fixasse um período de transição”, declarou Torquato. “Muito bem, o atual
Estatuto do Índio proíbe. Vamos revogar o estatuto, causando uma revolta no
mundo inteiro? Ou seria melhor criarmos uma transição de cinco anos, dez anos
ou 15 anos para que essa terra volte definitivamente para os índios?”
Torquato não esconde a origem da ideia. “A bancada ruralista não é fácil.
Mas é numerosa. Tem 220, 230 deputados. O que essa bancada pede é uma
transição.'' Sem fornecer detalhes do texto, o ministro contou que ele próprio
redigiu a proposta que o Planalto enviará ao Congresso. Sincero, admitiu: “O
presidente Temer e eu sempre achamos, desde o começo, que isso pode não
resistir a um escrutínio do Judiciário.”
Entretanto, a despeito do risco de naufrágio judicial, a canoa seguirá o
seu curso. “Vai para o Congresso”, reiterou Torquato. “Encontrou o ponto comum,
tem que ir para o Congresso. Os índios do Sul querem. Agora, os do Norte não
querem. O Legislativo decide.” De acordo com o ministro, o arrendamento valeria
apenas para a exploração agrícola das terras. Não inclui a pecuária. Tampouco a
mineração, que exige autorização legislativa específica.
“Em até 15 anos o cara sai da terra indígena”, repetiu Torquato. “Nesse
período, paga o arrendamento. Hoje, cada um paga o que quer. Não tem controle.”
O ministro diz enfrentar outra dificuldade para obter o que chamou de
“solução de longo prazo para a questão indígena.” Ele volta à Constituição.
Estaciona o dedo novamente no artigo 237, dessa vez no parágrafo 1º. Volta a
recitar o texto: “São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles
habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas,
as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu
bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus
usos, costumes e tradições.”
“Muito bem, essa descrição está na Constituição, ninguém pode mexer. O que
significa?” Para responder a si mesmo, Torquato menciona o caso da tribo dos
Apyterewa (pronuncia-se apiterêua). Ocupam um pedaço do mapa do Estado do Pará.
Parte das terras foi invadida por agronegociantes brancos. O Supremo Tribunal
Federal ordenou que fossem retirados da terra indígena. Isso aconteceu há seis
anos. E nada.
“Pela terceira vez, tenta-se cumprir essa decisão”, disse Torquato, antes
de deixar claro que enxerga na sentença um quê de absurdo. “O Supremo mandou
tirarmos os brancos de lá de dentro. Qual é a área? É quase do tamanho do
Distrito Federal. Só que aqui nós somos 3 milhões de habitantes. Lá, são 600
índios. Vivem tão isolados que tem branco que nunca viu nenhum desses índios.”
O ministro traçou, por assim dizer, um perfil sócio-econômico dos
invasores: “São 1.200 não-indígenas. Criam cerca de 120 mil cabeças de gado de
corte. Plantam 1 milhão de pés de cacau. Nada disso é cultura indígena. Tira os
brancos de lá, perde tudo.”
Como que decidido a enfatizar sua posição, o titular da pasta que carrega
a Funai no organograma citou o caso da reserva Raposa Serra do Sol, de onde
também foram retirados produtores rurais por ordem do Supremo.
“Há um documentário da BBC. Mostra o antes e o depois da desocupação”,
realçou Torquato. “Antes, estão lá os brancos — catarinenses, paranaenses,
gaúchos, mato-grossenses. Há a irrigação, os implementos agrícolas, os silos,
as máquinas plantadeiras e as colheitadeiras. E depois? Tudo abandonado, tudo
destruído. E os índios estão lá, esperando a mesada da Funai.”
Torquato recordou que, como consequência do julgamento sobre a reserva
Raposa Serra do Sol, o Supremo fixou “19 condicionantes” que deveriam guiar
todos os processos de demarcação de terras indígenas. No último diz 19 de
julho, a Advocacia-Geral da União editou um parecer que,
aprovado por Michel Temer, obriga todos os órgãos públicos federais a seguir as
normas fixadas pelo Supremo.
“Eu tinha mais de 30 porocessos prontos para mandar demarcar áreas
indígenas. Tive que devolver tudo por causa desse parecer. Complicou. É preciso
rever tudo.” Ex-professor universitário de Direito, Torquato explicou em timbre
didático como se cria uma terra indígena no Brasil.
“Manda fazer a investigação. Precisa mobilizar um antropólogo. Sabe
quantos temos na Funai? Quatro. São quatro antropólogos para o país inteiro!
Contratamos profissionais da Associação Brasileira de Antropólogos ou de uma
universidade. Trabalham voluntariamente. Vão lá quando querem. Um processo que
poderia levar seis meses leva seis anos.”
O ministro prosseguiu: “Depois que você define a área como terra indígena,
coloca 300 índios lá dentro. Falo por hipótese. Desses, 150 são mulheres.
Costumam ter uma média de cinco filhos. A terra logo fica pequena. Poderíamos
ampliar, desapropriando as terras em volta, na forma da Constituição. Os
ruralistas não têm nenhuma dificuldade em aceitar isso. Indeniza e os caras vão
embora.”
Nesse ponto, Torquato volta ao início da conversa: devolvendo à prosa a
pregação em favor do arrendamento das terras indígenas por produtores rurais.
“Como não está havendo desapropriações, pode-se criar uma reserva indígena e
fazer o arrendamento. Ou seja: como não foi indenizado, o fazendeiro continua
na fazenda que era dele”. Mas ele dispõe do título de propriedade?, indagou-se
ao ministro. E ele: “O título ele nem sempre tem. Mas ele tem a posse da terra
de fato.”
O problema nem sempre está na definição da posse da terra, disse o
ministro. “O que complica, ideologicamente, é o seguinte: diante da necessidade
de ampliar determinada área indígena, em vez de utilizar a figura da reserva e
proceder a desapropriação, sempre aparece um segundo antropólogo e corrige o
primeiro laudo para dizer que tudo é terra originalmente indígena.” Nessa
hipótese, a terra torna-se insuscetível de desapropriação.
“Assim começam os conflitos”, disse Torquato, ecoando raciocínios mais
próximos da bancada ruralista do que dos técnicos da Funai. “Normalmente, há
por trás dos conflitos uma posição ideológica de funcionários de carreira da
Funai, antropólogos ou não.” (Via: Blog do Josias de Souza)
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