Na tarde desta quinta-feira, o médico
cubano Adrian Brea Sánchez, de 30 anos, recebeu em sua caixa de e-mail a
mensagem que tanto temia. O governo cubano marcou para o próximo dia 5 o
voo de retorno dele para Cuba. Segundo o comunicado, a passagem aérea será
enviada na véspera da viagem e ele terá que se apresentar no aeroporto de
Brasília.
Sánchez
está a mais de mil quilômetros de distância da capital federal. Desde que
chegou ao Brasil em março de 2017, vindo de Santiago de Cuba para trabalhar no
programa Mais Médicos , ele vive em Pirapetinga, um município de cerca de 10
mil habitantes em Minas Gerais. Até ontem, o cubano diz que era o único
médico de família da cidade, quando foi avisado pela secretaria de saúde
municipal que seria desligado do programa por ordem da Organização Pan
Americana de Saúde (Opas). Ele já decidiu que não atenderá à convocação do
governo de seu país.
Indignado,
Sánchez rompeu o silêncio e deu uma entrevista ao GLOBO nesta tarde. Ela
fez duras críticas a Opas e ao governo cubano e diz que ficará no Brasil
nem que tenha que “trabalhar recolhendo lixo ou varrendo rua”. Ele afirma não
acreditar mais no governo cubano e, diferentemente da maioria dos médicos da
ilha que estão no Brasil, diz não temer represálias.
– Eu
vou ser considerado desertor. Estarei proibido de voltar a Cuba por oito anos,
amiga. O que eles vão fazer? Vão me matar? Quem garante que se eu voltasse
para lá eles não iam aplicar uma medida disciplinar ou invalidar meu
diploma? Todo dia acontece algo novo – desabafou.
Sánchez
vive com uma médica cubana, também desligada do Mais Médicos. Em junho deste
ano, ela teve que passar por uma cirurgia no Brasil e, durante a recuperação do
procedimento, foi avisada de que seria mandada de volta para Cuba. Não voltou,
apesar dos três filhos deixados na ilha com a mãe. Hoje o casal, que se
conheceu no Brasil, deposita todas as suas esperanças em uma nova convocação
para trabalhar no programa Mais Médicos. Eles fazem planos de serem aprovados
no Revalida, exame exigido de médicos estrangeiros para trabalhar no Brasil, e
construir a vida juntos no país.
Como você foi avisado de que seria desligado do Mais Médicos?
Eu
recebi uma ligação da secretária municipal de Saúde daqui (Pirapetinga) dizendo
que eu tenho que viajar no dia 5 de dezembro. Então liguei para o assessor
da Opas responsável pela minha área. A comunicação entre nós e a Opas é
por meio desses assessores. São cubanos encarregados de monitorar a
nossa atividade no Brasil, olhando se estamos trabalhando, se está tudo
bem. Eu gosto do meu país, mas não volto pelo que está acontecendo com a
Opas. A Opas está sendo manipulada por esse pessoal cubano. Ninguém dá
informação nenhuma para nós. É uma vergonha. Eu falei para ele que eu não tenho
como ir embora agora. Tenho um veículo que preciso vender para sair daqui,
empréstimos que fiz e não tenho como pagar de uma vez para ir embora. Mas
eles não entendem. Ele disse que, se eu não for embora, posso até perder a
minha nacionalidade cubana e ficar privado de voltar a Cuba por oito anos.
Isso está no contrato.
Quando foi seu último dia de trabalho?
Ontem.
Outros médicos cubanos trabalhavam com você?
Não.
Eu sou o único médico cubano na cidade. Eu trabalhava sozinho no posto de
saúde. É uma cidade pequena e não tem nenhum médico brasileiro. Tinha
um, mas ele saiu meses atrás. Não era do Mais Médicos.
Se era o único médico, hoje chegou algum substituto para fazer o
atendimento?
Pelo
que sei, hoje não teve atendimento em Pirapetinga. Eu atendia no posto de
segunda a quinta-feira, e, às quartas-feiras, fazia visita domiciliar com
os assistentes de saúde. A cidade faz divisa com o Rio de
Janeiro e nós atendíamos não só a população da cidade como de bairros da
divisa com o Rio.
Não tem medo de ficar no Brasil e você ou sua família sofrer
represálias?
Eles
(representantes do governo cubano) já procuraram meus pais em Santiago de
Cuba, onde eu morava, para falar o que está acontecendo aqui no Brasil.
Desde que o Bolsonaro foi eleito, começou a briga e uma campanha política
para que nossos familiares falem com a gente para evitar que fiquemos no
Brasil. Meus familiares me mandaram um e-mail contando a situação.
Não ficou com medo? Muitos médicos estão com medo de dar
entrevistas.
Não.
Eu vou ser considerado desertor. Estarei proibido de voltar a Cuba por oito
anos, amiga. O que eles vão fazer? Vão me matar? Quem garante que quando você
chegar lá eles não vão te aplicar uma medida disciplinar ou invalidar meu
diploma? Todo dia acontece algo novo. Agora mesmo há muita desinformação e
conversa fiada. Não sei se é verdade, mas estão dizendo que
mandaram bloquear as contas de todos os médicos cubanos no Banco do Brasil.
Eu estou pensando em passar no banco para sacar o meu dinheiro, o pouco que eu
tenho guardado. Eles podem fazer qualquer coisa, manipulam até a Opas e tudo.
Mas se isso acontecer, é roubo, crime.
Quem você considera o responsável pela situação dos médicos
cubanos? O governo brasileiro ou cubano?
O
governo cubano. Nosso presidente Jair Bolsonaro falou que o médico
cubano precisa fazer Revalida se quiser trabalhar no Brasil. Cuba sabe
disso e fez tudo para tirar os médicos daqui. Ela sabe que muito médico vai ser
aprovado no Revalida e vai ficar no Brasil. São médicos que Cuba perde.
Você vive sozinho no Brasil?
Não.
Sou casado e minha mulher também era do Mais Médicos, mas ela foi desligada em
junho deste ano depois que passou por uma cirurgia ginecológica. A sacanagem
foi grande com ela. Ela trabalhava em Itambacuri, perto de Governador
Valadares, e mandaram ela voltar para Cuba por causa da doença enquanto se
recuperava da cirurgia. Hoje ela é considerada desertora em Cuba. Eles
disseram que ela não podia fazer a cirurgia no Brasil, mas ela não tinha
condição de viajar daquele jeito. O que eles queriam? Que ela morresse aqui.
Foi uma injustiça o que aconteceu com ela. Hoje ela está ótima, pronta para
trabalhar e esperando fazer a inscrição para o Mais Médicos.
Ela sofreu alguma retaliação por ter ficado no Brasil?
Ela
não pode voltar para Cuba.
Por que vocês querem ficar no Brasil?
Porque
é um bom país para trabalhar. Eu quero continuar trabalhando como médico porque
gosto da minha profissão. Meu contrato era de três anos. O que faço
com tudo que eu comprei para mobiliar minha casa? Fiz um empréstimo, estou
pagando. Não tenho dinheiro para quitar isso de uma hora para outra e ir
embora. Esse pessoal não pensou nisso? Tem muito médico hoje
dormindo no chão, vendendo a cama e a geladeira para ir embora. É muita
sacanagem.
Você veio para o Brasil pensando em ficar aqui?
Eu
vim para trabalhar três anos. Só que o contrato foi rasgado. Eu recebi R$ 2.976
por mês e não R$ 4 mil como dizem. Esse foi o meu salário todo esse tempo. O
restante ninguém sabe para onde vai. O que um assessor da Opas dizia quando a
gente perguntava era que o 75% que ia para lá para ajudar o governo cubano a
melhorar a situação dos hospitais.
Você está decidido a ficar no Brasil?
Sim,
fico aqui nem que tenha que trabalhar recolhendo lixo ou varrendo rua. Eu varro
mesmo. Mas para meu país eu não volto não porque me sinto enganado. Me disseram
que eu ia ficar três anos, ganhar R$ 4 mil. Mas eu estou aqui trabalhando e
todo mundo pegando o meu dinheiro. Eu me sinto uma vaca leiteira que a toda
hora chega um pessoal e tira seu leite. Isso é legal? Não, é sacanagem.
Vai tentar se inscrever no Mais Médicos?
Com
certeza. Nós cubanos somos formados em Cuba como médicos
especialistas de família e posso garantir que temos mais de três anos de
experiência. Só que ela só é reconhecida em Cuba em nenhum outro país. Vou
tentar fazer também o Revalida.
O que você vai fazer se não entrar no Mais Médico de novo?
Essa
é uma boa pergunta. Vou estudar para o Revalida. É a minha chance. Hoje estamos
sozinhos aqui. Somos só nós e vocês. A única coisa que a Opas vai fazer por nós
é mandar o bilhete da passagem.
Blog: O Povo com a Notícia