População cansada de ficar em casa, restrições menos duras, aumento de casos de Covid-19 e mortes, hospitais novamente lotados, descoberta de uma variante mais transmissível do vírus em Manaus, no Amazonas, ausência de uma coordenação nacional, dificuldades para vacinação em massa...
Estes e outros fatores fazem especialistas em saúde pública acreditarem que a pandemia no Brasil pode ter nos próximos meses um capítulo ainda mais trágico do que o observado em quase um ano desde que o novo coronavírus chegou ao País, segundo especialistas ouvidos pela reportagem do portal R7.
Um retrato disso já está evidenciado nos números oficiais do Ministério da
Saúde. As três primeiras semanas de 2021 foram as piores em números de novos
casos do no auge da chamada primeira onda, no meio do ano passado.
Desde 21 de janeiro, o número de casos ativos de Covid-19 no
país está em um patamar de 900 mil, muito acima dos 690,6 mil observados na
semana de 22 de julho, quando o Brasil registrava picos de casos em 2020.
As previsões para o verão
brasileiro eram relativamente otimistas em setembro e outubro, explica Ethel
Maciel, pós-doutora em epidemiologia e professora do Departamento de Enfermagem
da Ufes (Universidade Federal do Espírito Santo).
"Pensamos que passaríamos o verão com baixo número de
casos. O vírus está desafiando as nossas previsões, é algo preocupante. Pelas
nossas previsões, teríamos uma segunda onda lá para abril e maio, já com a
vacinação em andamento."
O médico e epidemiologista Eliseu Alves Waldman, professor da
Faculdade de Saúde Pública da USP (Universidade de São Paulo) considera,
inclusive, que o Brasil pode viver uma "terceira onda" sem que nem
mesmo ter saído da anterior.
"Saiu um artigo mostrando que o coronavírus está
assumindo uma sazonalidade em todo o mundo, mostrando com dados e uma análise
epidemiológica a respeito. Se isso ocorrer aqui no hemisfério sul, nós, que
estamos na vigência de uma segunda onda sem que tivéssemos saindo da primeira,
e possivelmente pelas dificuldades de uma vacinação em massa, continuaremos em
um patamar elevado. Quando chegar em abril e maio [outono na parte mais
populosa do País], isso não nos permite uma visão otimista."
Os meses de frio no Brasil são tradicionalmente marcados pelo
aumento de doenças causadas por vírus respiratórios, como é o caso da Covid-19.
"O melhor preditor do comportamento futuro é o
comportamento passado — e vocês podem ver o passado. O futuro do Brasil é o que
está acontecendo aqui nos Estados Unidos e na Europa, os casos estão subindo
conforme está ficando mais frio. Eu acredito 100% que os casos vão subir no
Brasil quando esfriar, a menos que haja uma vacina", disse ao R7 em
novembro o pesquisador Adam Kaplin, da Universidade Johns Hopkins, nos Estados
Unidos.
Nova variante no Amazonas
A descoberta por pesquisadores da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) de uma nova
variante do coronavírus mais transmissível e predominante na cidade de Manaus,
no Amazonas, deve ser vista pelos especialistas como um sinal de alerta.
A OMS (Organização Mundial da Saúde), que colocou a mutação
brasileira na lista de "preocupantes", junto com a do Reino Unido e
da África do Sul, informou na quarta-feira (27) que a cepa já foi detectada em
oito países, incluindo Estados Unidos, Itália, Alemanha e Japão.
"Se já está em oito países, é possível que já esteja no
país todo", acrescenta Waldman.
O ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta também
demonstrou preocupação em relação à variante e à forma como o governo federal
tem administrado a situação do Amazonas.
"O mundo inteiro está fechando os voos para o Brasil, e
o Brasil está, não só aberto normalmente, como está retirando pacientes de
Manaus, mandando para Goiás, Bahia, outros lugares, sem fazer os bloqueios de
biossegurança. Provavelmente, a gente vai plantar essa cepa em todos os
territórios da federação e daqui a 60 dias a gente pode ter uma
megaepidemia", afirmou em entrevista ao programa Manhattan Connection, da
TV Cultura, na semana passada.
A variante brasileira possui 12 mutações na proteína de
superfície do vírus, chamada de spike, que é a parte que se conecta com
receptores do sistema respiratório humano para entrar nas células.
O virologista e pesquisador da Fiocruz Amazonas, Felipe
Naveca, integrante da equipe que descobriu a variante, explica que essas
mutações deram "vantagem" ao vírus.
"Fazendo uma analogia simples: a nossa célula seria a
porta, a fechadura seria o receptor [por onde o vírus entra no organismo]. O
vírus conseguia abrir aquela porta, mas era uma chave que não era muito boa.
Agora, a gente pode ter uma chave que consegue abrir com muito mais facilidade.
Por isso chamam muito atenção essas mutações."
Medidas restritivas
Diferente de março do ano passado, quando o "fique em casa" foi
compreendido pela maior parte da população, hoje, muita gente está cansada do
isolamento.
"Eu acho que a gente vai piorar muito antes que melhore.
Entramos em uma situação com este ambiente político que foi criado que temos
visto até dificuldade dos governadores de instituir medidas mais duras. Está
difícil conseguir convencer as pessoas", observa a professora da Ufes.
No Amazonas, quando o governador Wilson Lima (PSC) anunciou
um lockdown após o Natal, centenas de pessoas foram às ruas para protestar
contra o fechamento do comércio, e ele recuou da decisão. Duas semanas depois,
o sistema de saúde do estado entrou em colapso com pessoas morrendo por falta
de oxigênio.
O Amazonas foi, no ano passado, o primeiro estado a sentir
com força o impacto da pandemia. Houve colapso hospitalar e funerário em
Manaus.
Em maio, no auge da primeira onda, o estado registrou uma
média de 78 mortes diárias por Covid-19. Com a segunda onda, chegou a uma média
recorde de 105 óbitos em 21 de janeiro.
Cerca de um mês e meio depois, a capital paulista atingiu 90%
de ocupação dos leitos de UTI destinados a pacientes com Covid-19. A doença se
espalhou para as grandes cidades do interior algumas semanas depois.
Ethel Maciel alerta que o Brasil tem registrado médias de
1.000 mortes por dia de forma "consistente".
"Já está ultrapassando em alguns lugares o que a gente
viu na primeira onda em número de casos e óbitos — e com muito mais coisas
abertas. Ou seja, não temos quase medida de restrição nenhuma com uma situação
muito pior."
Agora, explica Waldman, a pandemia atinge com mais força
cidades pequenas de todo o país.
A primeira onda, que não foi fácil, pegou fundamentalmente as
grandes capitais e, no máximo, uma parte das cidades médias, centros de região,
que bem ou mal têm condições mínimas de enfrentamento. Agora, quando chega às
pequenas cidades, que é o que está acontecendo, tende a ser dramático.
O epidemiologista faz a ressalva de que não há alternativa
além das medidas de redução da mobilidade neste momento, principalmente em
locais com pouca infraestrutura hospitalar.
"O papel dos gestores é sempre se preparar para o pior
cenário. Se ele não se concretizar, ótimo. Mas é melhor nestes casos dramáticos
você errar pelo excesso, não pela falta. Prefeitos estão se negando a tomar
medidas mais drásticas, mas não têm também condições de atender a população. Em
Manaus, tem 600 pessoas esperando disponibilidade de leitos. Possivelmente vão
morrer em casa."
O governo de São Paulo endureceu desde 25 de janeiro as
restrições para o funcionamento de estabelecimentos comerciais. Mas as taxas de
isolamento continuam em torno de 40% nos dias de semana, muito abaixo do
patamar considerado necessário para diminuir a velocidade de transmissão do
vírus (acima de 55%).
Falta de vacinas
Os dois epidemiologistas afirmam que é difícil estabelecer um cenário para os
próximos meses no Brasil diante de tantas variantes e concordam que tudo
dependerá da velocidade como que o Brasil conseguirá vacinar a população.
"A nossa situação vai depender muito da nossa vacinação,
se a gente conseguir uma campanha robusta", avalia Ethel. Mas o cenário
das vacinas também não pode ser considerado otimista.
Com apenas duas vacinas contra Covid-19 compradas até agora
para uso no SUS (CoronaVac e Oxford), o Brasil enfrenta dificuldades na
obtenção de insumos para a produção das duas pelo Instituto Butantan e Fiocruz,
respectivamente.
Atrasos no fornecimento da matéria-prima poderiam forçar o
Ministério da Saúde a paralisar a campanha de vacinação iniciada em 18 de
janeiro.
Sem IFA (ingrediente farmacêutico ativo) da AstraZeneca, a
Fiocruz teve que adiar para março a entrega das primeiras doses da vacina de
Oxford, que serão produzidas na fábrica de Bio-Manguinhos, no Rio de Janeiro.
A alternativa foi importar 2 milhões de doses do Instituto
Serum, da Índia, para serem somadas aos 10,8 milhões de doses da CoronaVac já
disponíveis.
Os grupos prioritários estabelecidos pelo Ministério da Saúde
reúnem cerca de 77 milhões de pessoas. Com duas doses, o país precisaria ter
mais de 154 milhões de vacinas disponíveis para cobrir as quatro etapas.
Além disso, por ser uma descoberta relativamente nova,
divulgada em 12 de janeiro, não se sabe nem mesmo se as vacinas que estão
previstas para uso na campanha de imunização contra covid-19 no país são
eficazes contra a variante brasileira.
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