Especialistas, médicos e ativistas têm defendido a possibilidade de
garantir à mulher o direito de interromper legalmente a gravidez enquanto
perdurar a emergência da epidemia do vírus zika. O principal argumento é o
sofrimento e o impacto emocional a que as mulheres são submetidas e a defesa de
que o aborto é uma questão de saúde pública e bem-estar.
“Eu penso que, dada a gravidade do problema e ele ser persistente
durante a vida do bebê, é um direito da mulher decidir o que ela pode carregar
sobre os ombros, isso é fundamental, é um direito humano, é um direito sexual e
reprodutivo e é um respeito às mulheres, notadamente as de menor renda”,
defende o especialista em medicina fetal, Thomas Gollop.
A Professora da Faculdade de Medicina da Santa Casa de São Paulo, Tânia
Lago, também chama a atenção para a gravidade da epidemia. “É importante que as
mulheres, ao decidirem ficar grávidas, tenham claro os riscos aos quais elas
estão sendo submetidas e seria muito importante que aquelas mulheres que
engravidaram e que tenham zika pudessem ter acesso à opção de interromper a
gravidez em função do risco de uma doença grave acometendo o feto, porque as
consequências podem ser mais graves do que inicialmente pareciam”, alerta
Tânia.
Até o fim deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) deve julgar uma
ação direta de inconstitucionalidade (ADI 5581) que inclui o pedido de
interrupção da gravidez como uma possibilidade excepcional para mulheres
grávidas infectadas pelo vírus Zika e que estão sofrendo com a epidemia. O
documento foi protocolado pela Associação Nacional de Defensores Públicos
(Anadep) e destaca que, diante de uma situação de iminente perigo à saúde
pública, há a necessidade da garantia de políticas públicas específicas para as
mulheres e crianças atingidas pelo vírus Zika, como o acesso a medicamentos,
transporte e benefícios sociais como o Benefício de Prestação Continuada e o
Tratamento Fora de Domicílio.
“A ADI tem grande repercussão e impacto, sobretudo pelos pleitos
principais de implementação de políticas públicas de informações, diagnóstico e
tratamento integral às mães e crianças atingidas. Como é de domínio público
estamos diante de uma epidemia mundial que exige atuação estratégica e eficaz
do Estado brasileiro”, destaca Joaquim Neto, presidente da Anadep.
A ação também tem o apoio da Anis Instituto de Bioética, coordenado pela
pesquisadora Débora Diniz, que acompanhou por dois meses a rotina das mulheres
afetadas pela epidemia. “Essa ação não visa a legalização do aborto no país,
porque nós estamos falando da epidemia, nós temos uma situação concreta que
bate à porta. Nós estamos falando das mulheres durante a epidemia e é nelas que
nós queremos pensar. Como proteger os direitos violados. É claro que, ao lançar
a questão do aborto como parte de uma proteção, o debate do aborto volta pra
cena nacional. E nós esperamos muito que ele [o debate] volte de uma maneira
mais qualificada e reconheça o intenso sofrimento e risco [que as mulheres] tem
ao se manter grávidas contra sua vontade”, argumenta Débora Diniz.
Religião: O contexto da epidemia e a pressão de ativistas, no entanto, não mudaram
a posição de grupos religiosos sobre a possibilidade de legalizar a interrupção
da gravidez. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) afirma que
compreende a aflição das mulheres e defende que elas precisam ser amparadas,
mas reforça que a epidemia não justifica a interrupção o direito de viver dos
nascituros. “O posicionamento da CNBB continua o mesmo, que é o de defesa da
vida. Nos chama a atenção a dificuldade de acolhimento dessas crianças. O que
devemos fazer é chamar a sociedade para ser presente na vida dessas mulheres e
crianças. Existe um descuido geral e temos que retomar essa questão da
necessidade de combate ao mosquito. Não se fazem mais trabalhos junto às
escolas e os meios de comunicação não falam mais do assunto. Mas o mosquito não
transmite só o zika, então, todo o cuidado é pouco”, alerta Dom Leonardo Steiner,
secretário-geral da CNBB.
Tanto a CNBB quanto a Anadep devem continuar o debate sobre o aborto
depois do julgamento da ação no STF. “Acreditamos que há pontos que podem
exigir uma ampliação do debate, a exemplo de audiências públicas nos termos que
a própria lei dispõe e, portanto, virem a ser apreciados posteriormente ao
julgamento da medida cautelar”, afirma Joaquim Neto, presidente da Anadep. “Já
dialogamos com a Anadep. Há elementos importantes que concordamos na ação. E
vamos continuar buscando o diálogo para mostrar a importância da vida e do
cuidado com o ser humano”, reforça Dom Leonardo.
Aborto inseguro: O Instituto Anis liderou uma pesquisa nacional sobre o aborto e
constatou que a interrupção da gravidez já é uma prática entre as mulheres
brasileiras. “Nós encontramos que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos já fez
pelo menos um aborto na vida. Isso significa que o aborto é um evento comum, de
mulheres comuns. Ele é um evento reprodutivo que faz parte da vida das
mulheres. Ao mesmo tempo que nós criminalizamos o aborto e o descrevemos como
um tabu, nós estamos falando de mulheres muito próximas a nós. Todas nós
conhecemos cinco mulheres e uma em cada cinco já fez um aborto”, afirma a
pesquisadora Débora Diniz.
O medo do futuro e a incerteza dos fatos relacionados à Síndrome
Congênita do Zika têm levado muitas mulheres ao aborto clandestino e inseguro.
Desde a emergência da epidemia, profissionais de saúde perceberam um aumento no
número de cirurgias de curetagem, procedimento que retira os restos de um
aborto realizado de forma insegura ou clandestina.
A enfermeira Quéssia Rodrigues trabalha em um dos maiores hospitais
públicos de Salvador e observou a diferença na demanda de cirurgias desde o
início da epidemia. “Eu tenho me assustado com o número de abortamentos que tem
acontecido na unidade. A gente percebe que tá relacionado à questão dela ter
tido zika. A gente presencia abortamentos espontâneos, mas a gente tem tido
muito abortamento provocado. Às vezes, a gente questiona ela e percebe o medo
que ela tem de desenvolver uma criança com microcefalia,” relata Quéssia.
Líderes comunitárias também relatam a ocorrência de abortamentos depois
da epidemia. “Tivemos muitos casos de aborto aqui e o que nos traz mais
indignação é que as mulheres realizam aborto de uma maneira muito insegura. O
maior índice de morte materna na nossa capital, em Salvador, é por conta do
aborto", conta a líder do coletivo de mulheres do Calafate, em Salvador,
Marta Leiro. Ela ressalta que quem tem maior poder aquisitivo fica menos
exposto a riscos: "Quem tem dinheiro faz em clínicas e tem todo um
acompanhamento ou então vai pra um país onde [o aborto] é legalizado e fica de
boa, sem sentimento de culpa”.
Um estudo da Revista Científica The New England Journal of Medicine
mostra que, desde que Organização Mundial de Saúde decretou a epidemia do zika
como emergência internacional, houve aumento de pedidos de aborto por mulheres
latino-americanas a um grupo internacional que fornece pílulas abortivas e
orienta mulheres de países onde a interrupção da gravidez é proibida.
No Brasil, a comercialização de pílulas abortivas, como o Mifepristone e
o Misoprostol, também conhecido como Cytotec, é considerada crime desde 2005. A
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, Anvisa, fiscaliza e apreende os
medicamentos vendidos de forma irregular. Do final de 2005 até o momento, a
Anvisa determinou a suspensão de 75 páginas de Internet que divulgavam ou
comercializavam o Cytotec. Outros 45 sites ainda estão sob a análise da
Agência. (Via: Agência Brasil)
Blog: O Povo com a Notícia