Pesquisador
relata funcionamento do chamado "Polígono da Maconha", onde
agricultores pobres do sertão nordestino fornecem matéria-prima para
organizações criminosas
O Brasil não é mais somente uma
rota do tráfico internacional de narcóticos. Hoje, o País é o maior consumidor
de drogas da América do Sul e também um dos maiores produtores, em parte graças
às plantações no chamado "Polígono da Maconha", na região sertaneja
do Nordeste.
"Há um mito de
que a maconha consumida no Brasil venha do Paraguai, de que não é um problema
nosso", afirma o sociólogo Paulo Cesar Fraga, professor da
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). "Na verdade, a
agricultura familiar e tradicional do sertão nordestino já produz 40% da
maconha consumida no País", diz.
Formado por 13
cidades (Salgueiro, Floresta, Belém de São Francisco, Cabrobó, Orocó, Santa
Maria da Boa Vista, Petrolina, Carnaubeira da Penha e Betânia, todas em
Pernambuco, e Juazeiro, Curaçá, Glória e Paulo Afonso, na Bahia), o
Polígono da Maconha surgiu graças a uma confluência de fatores, no topo das quais
está o baixo investimento dos governos no desenvolvimento da região.
Para Fraga, o
governo deveria rever sua política de repressão ao plantio, o que poderia
ajudar no desenvolvimento dos municípios afetados pela produção e também os
pequenos agricultores, que acabam submetidos às regras do crime organizado.
Dados da Polícia Federal mostram que 1kg de maconha rende para um
agricultor da erva cerca de 150 a 200 reais, enquanto que a maconha é
vendida nas capitais entre 600 e mil reais.
Leia a entrevista:
CartaCapital: A maconha cultivada no
Polígono da Maconha é responsável pelo abastecimento de qual fatia do mercado
nacional?
Paulo Fraga: Há
um mito de que a maconha consumida no Brasil venha do Paraguai, de que não é um
problema nosso. No entanto, estima-se que a maconha do Vale do São Francisco
abasteça cerca de 40% do mercado nacional, ficando restrita às capitais, às
regiões metropolitanas e ao interior do Nordeste. A maior parte da maconha
consumida no Brasil vem do Paraguai e abastece os principais mercados como Rio,
São Paulo, Porto Alegre, Curitiba, Belo Horizonte e as regiões metropolitanas e
as cidades de médio e pequeno porte dos estados do Sul e Sudeste. O Brasil
é considerado o quinto maior produtor de maconha das Américas, mas sua produção
não consegue abastecer todo o mercado nacional. Somos grandes consumidores.
CC: É possível estimar os
valores envolvidos nesta cadeia produtiva?
PF: Não
arriscaria valores, pois não há fontes ou projeções muito seguras. O que se
pode dizer é que houve época em que os recursos do plantio tinham muito impacto
nas cidades locais. Isso mudou e hoje o impacto é menor. Apesar de não se ter
uma política agrária consistente para a região, os programas sociais e ações de
desenvolvimento nos últimos anos tiveram impactos mais relevantes.
A crise que se
avizinha pode significar um quadro como o que víamos o final do anos 1990, em
que a pobreza extrema era muito presente na região, a violência era alarmante e
a migração da violência do tráfico migrava para outras criminalidades mais
facilmente. No final dos anos 1990, das 10 cidades com maior taxa de homicídios
no país, três ficavam na região do Polígono da Maconha.
CC: O que explica o plantio de
maconha na região do Nordeste denominada Polígono da Maconha?
PF: A presença da maconha na região vem de longa
data, mas o cultivo se intensifica com o surgimento de um mercado no País. Esse
surgimento estava atrelado à contracultura nos anos 1970 e teve produção
recorde a partir da década de 90. No entanto, a explicação para o plantio de
maconha na região do Vale do São Francisco não está apenas relacionada a um
fator histórico ou de um mercado consumidor.
O deslocamento
de agricultores para a construção de hidrelétricas no rio e o crescimento do
agronegócio também têm uma parcela significativa na explicação deste fenômeno.
O agronegócio, ao mesmo tempo que criou rotas de escoamento, não foi
uma alternativa viável de emprego para os trabalhadores rurais. Se
somarmos a isso as péssimas condições para o desenvolvimento dos produtos
agrícolas tradicionais, em uma região de seca e de baixíssimo investimento
governamental, temos os elementos propícios para o crescimento dos plantios
ilícitos de cannabis.
CC: O senhor disse que, além dos elementos
econômicos e sociais, historicamente o cultivo de maconha sempre esteve
presente nesta região. É isso mesmo?
PF: Há
registros da presença de cannabis na região desde a segunda metade do Século
XIX. O inglês Richard Burton, navegando pelo Rio São Francisco, identificou a
planta e chamou a atenção para o fato de o clima e da vegetação serem propícios
ao desenvolvimento de seu cultivo para ser usado comercialmente, na indústria
têxtil.
Já nos anos 1930,
Jarbas Pernambucano, estudioso de questões sociais envolvendo o uso da maconha,
revela a presença de plantios para fins de abastecimento dos incipientes
mercados de Salvador e Recife. Nos anos 1950, em seu livro O Homem do Vale do São Francisco, Donald Pierson
descreve situações de uso coletivo da maconha e de plantio em, pelo menos,
cinco localidades. Nesta mesma época, já há preocupação das autoridades
brasileiras com a repressão do plantio nessa região.
O
Polígono da Maconha compreende 13 cidades do sertão pernambucano e baiano. Mais
ao norte, desponta outro polo produtor no Maranhão e Pará
CC: A repressão ao plantio de
maconha ocorre desde os anos 80. Por que ela não foi capaz de acabar com essa
prática?
PF: Não
adianta reprimir sem dar maiores alternativas ao plantio ilícito. É preciso
ações como um maior financiamento do pequeno produtor, apoio ao escoamento da
produção, integrar as áreas produtivas com os mercados consumidores, amenizar o
convívio com a seca e mudar a nossa política de repressão às drogas.
Estamos no século XXI e não podemos mais utilizar a desculpa de que a seca é um
flagelo. Nessa mesma região, o agronegócio prospera. O problema, com certeza,
não é a falta de água.
CC: Há interesse de grupos
familiares ou de políticos regionais em manter essa atividade, que é altamente
lucrativa?
PF: Enquanto
houver esses problemas de infraestrutura para a agricultura local, haverá o
plantio de cannabis. Mas é lamentável que o Brasil não reveja suas leis sobre a
produção de cannabis e essa região não possa se transformar em um polo legal
para fins medicinais do uso de cannabis, por exemplo, ou de produção têxtil e,
mesmo, para fins recreativos. Sei que a questão não é simples, mas precisamos
enfrentá-la.
Em um possível cenário
em que a maconha seja liberada, esta região poderia ser aquela que teria o
monopólio da produção, notadamente, no sistema de agricultura familiar. A
maconha, então, traria melhores condições de vida para o sertanejo. Porque
vamos ainda colocar trabalhadores rurais na cadeia ou na vida do crime? Quem
ganha com isso? Com certeza, não é o pequeno agricultor. Quem mais se beneficia
não é o pequeno agricultor, mas o atravessador e o "patrão", como na
agricultura tradicional.
CC: Qual é o perfil do trabalhador envolvido neste plantio?
PF: O
trabalhador envolvido no plantio da cannabis não se diferencia do agricultor
tradicional. São agricultores pobres, que não têm muitas condições de uma vida
mais digna de consumo e bem estar fora do plantio ilícito. Muitos deles em uma
época do ano plantam o produto tradicional como o algodão, o pimentão, o tomate
e, em outra parte do ano, se envolvem no plantio de cannabis. Ou seja, utilizam
o plantio de cannabis como forma de complementar sua renda. Outros se dedicam
mais intensificadamente e estão mais atrelados à rede criminosa. Mas é
importante frisar que a grande maioria dos agricultores locais não têm qualquer
relação com o plantio de cannabis.
CC: O plantio envolve a família toda?
PF: Nos
anos 1990 era mais comum ver jovens, adolescente e até criança no plantio. Os
programas governamentais implementados nas últimas décadas tiveram um impacto
positivo de expor menos esse público às condições de trabalho, na maioria das
vezes, penosas. Hoje, quando se utiliza força de trabalho infanto-juvenil é
mais na hora da colheita, pois ela precisa ser rápida para evitar roubos de
outros grupos ou não ser apanhados pela polícia, que prefere agir na repressão
no momento da colheita para aumentar o prejuízo. Muitos jovens, filhos e netos
de agricultores atingidos pelas barragens do Rio São Francisco tiveram sua
primeira experiência agrícola no plantio de cannabis.
CC: É um plantio organizado em grandes propriedades ou em agricultura
familiar?
PF: Não
há latifúndio ou plantios em áreas muito extensas porque isso facilitaria bem
mais as tarefas de identificação das polícias, principalmente a Polícia
Federal, que hoje já faz um trabalho mais eficiente de identificação de
plantios por imagem de satélites. Ademais, plantios muito extensos são de mais
difícil organização, planejamento e controle.
CC: Então, como os trabalhadores se envolvem neste plantio?
PF: Os
trabalhadores se envolvem, geralmente, de três formas. A primeira é como
assalariado. Sendo contratado por um período, para plantar, cuidar e colher.
Pode ser, também, no sistema de meeiro, quando cuida de uma porção de terra e
depois divide o produto com quem chamam de "patrão", uma pessoa que
geralmente nem conhecem. A terceira forma é como agricultura familiar. Em
qualquer um dos três modos, o pequeno agricultor envolvido não tem controle do
preço final do produto e se insere de maneira subalterna, em um elo de produção
e venda em que há mais atores. O agricultor é o elo mais frágil da cadeia e é
quem mais sofre com a repressão porque está na ponta do processo e mais
desprotegido.
CC: Em quais terras ocorre a produção de maconha?
PF: Devido
ao fato da legislação brasileira prever terras para desapropriação para fins de
reforma agrária em áreas onde forem encontrados plantios ilícitos, as
plantações se fazem, geralmente. em terras abandonadas, de proprietário
desconhecido ou em áreas públicas, inclusive de preservação, como a caatinga.
No entanto, com a intensificação das ações de erradicação dos plantios nos
últimos anos, volta-se a utilizar plantios em pequenas propriedades, em
quantidades de covas reduzidas, para evitar a identificação, e nas ilhas do Rio
São Francisco.
CC: O plantio acontece o ano todo?
PF: Sim, é possível plantar o ano todo, pois não
há muita variação e a cannabis é uma planta bem adaptada. O que se busca é
variar o período para se evitar as ações de erradicação de plantio.
CC: Existe relação entre o uso de agrotóxicos nessas plantações e uma
maior frequência das incursões da polícia nesta região?
PF: Agrotóxico, no sentido do defensor agrícola
para evitar pragas, não. Mas, em relação a uso de produtos para acelerar a
produção, sim. Historicamente o plantio de cannabis na região era feito sem a
utilização de adubos químicos para evitar o aumento do preço de custo da
produção. No entanto, o aumento da eficiência das ações de erradicação das
polícias, prevendo ações em períodos de colheitas de quatro meses, levou à
utilização de adubos químicos para acelerar o tempo da colheita. Hoje é
possível ter ciclos de dois meses.
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