Quando foi fotografado na delegacia há quatro anos, Tiago Vianna Gomes, 28, não imaginou que aquele registro preto e branco iria parar em um álbum de suspeitos e lhe renderia nove processos judiciais e duas passagens pela prisão por roubos que não cometeu.
O caso é emblemático das falhas graves da Polícia Civil, do Ministério Público e do Judiciário na investigação, denúncia e condenação de suspeitos com base em reconhecimento fotográfico.
A insuficiência de prova foi o entendimento do
ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Sebastião Reis Júnior, no
dia 15 de dezembro, para absolver Tiago de uma condenação na primeira e segunda
instâncias pelo roubo de uma moto em 2017.
A vítima apontou que o assaltante era negro e
tinha 1,65m de altura – Tiago tem 1,80m. No entanto, a desembargadora Rosa
Helena Penna Macedo Guita julgou que a diferença de 15 centímetros "não é
assim tão grande", chamou o reconhecimento de prova cabal e o condenou a 5
anos e 4 meses de prisão.
Tiago acabou preso em março deste ano, mas por
conta da pandemia de Covid-19 conseguiu a prisão domiciliar duas semanas
depois. Ele mora em Mesquita, na Baixada Fluminense, e trabalha como entregador
de quentinhas da pensão da mãe. Consegue R$ 1.200 por mês, para criar sozinho
os três filhos.
Na absolvição, Reis Júnior destacou que, além da
falta de semelhança entre ele e o verdadeiro criminoso, na hora do
reconhecimento em juízo, o jovem foi apresentado ao lado de outras duas pessoas
com tonalidades de pele diferentes – o que pode ter comprometido o procedimento.
A decisão consolida o
entendimento de que o reconhecimento não pode ser a única prova para a
condenação. Em outubro, outro ministro do STJ, Rogerio Schietti Cruz, decidiu
no mesmo sentido em um caso de Santa Catarina.
A foto de Tiago fora tirada após ele ter sido acusado de receptação, em 2016. O
jovem conta que foi com os primos ajudar um colega a rebocar o carro enguiçado
quando a polícia chegou a avisou que aquele veículo era roubado. Com o carro
dele, parado logo atrás, estava tudo certo.
"Se eu soubesse que era roubado, não tinha ido lá", diz ele, que
respondeu o processo em liberdade e passou dois anos cumprindo medidas
cautelares.
Fichado na 52ª DP, de Nova Iguaçu, sua foto foi parar em um álbum de suspeitos
na 57ª DP, de Nilópolis, outra cidade da Baixada Fluminense.
A partir daí, veio o primeiro mandado de prisão. "Fui levado para cadeia e
perguntava 'fui preso por quê?'. Até que minha mãe, na visita três dias depois,
disse que eu estava respondendo por 157 [artigo do Código Penal para o crime de
roubo]."
Ficou oito meses no sistema prisional. Quando saiu, inocentado, viu aparecer
mais denúncias. Todas por reconhecimento da mesma foto. Ele chegou a ser
reconhecido até quando sua imagem foi incluída como "dublê" (pessoa
que, caso seja selecionada, não experimenta consequência jurídica já que não há
possibilidade de que tenha envolvimento com o fato investigado).
"Até hoje não sei como minha foto foi parar lá. Só chegava um monte de
intimação, aí eu ligava pra doutora e falava 'olha, chegou mais uma'. Nem sei
quantas são no total", diz Tiago, que nunca foi pego em flagrante.
O Código de Processo Penal estabelece que o reconhecimento deve ser feito
alinhando pessoas que tenham semelhanças com o suspeito, após a testemunha já
tê-lo descrito. Mas nem essa diretriz mínima tem sido respeitada.
O álbum de suspeitos, por sua vez, é um catálogo de pessoas categorizadas pelo
Estado como passíveis de desconfiança, mas não está regulado pela lei
brasileira e paira em um limbo normativo.
Muitos vão parar ali sem que haja qualquer investigação e sem que o fotografado
possa requerer a retirada de sua imagem.
Moradores de favelas no Rio fazem denúncias reiteradas de que policiais
militares e civis têm fotografado jovens sem nenhuma explicação. Eles também
buscam fotos nas redes sociais desses garotos, segundo relatos ouvidos pelo jornal
Folha de S.Paulo.
Além disso, há as chamadas "falsas memórias", ou seja, depois de um
tempo, vítimas não se lembram exatamente dos suspeitos e relatos podem ser
falsos apesar da sinceridade das testemunhas.
O racismo estrutural também pesa, resultando no que é chamado de "efeito
de outra raça", que faz com que adultos reconheçam pessoas do próprio
grupo racial com mais precisão do que indivíduos de outras etnias.
Nos EUA, uma pesquisa analisou 250 processos de revisão criminal em que o DNA
inocentou acusados. Nos 190 casos em que houve erros judiciários por
reconhecimento pessoal falho, quase a metade (93) foram de reconhecimentos
feitos por pessoas de raça diferente da dos suspeitos.
Tiago se considera vítima de racismo. "Não vou mentir pra tu não, acredito
que seja racismo e perseguição. Pelo fato de eu ser negro, pele escura, morador
de comunidade. Uma vez eu tava com as quentinhas, tive que largar e ouvir do
policial 'dá o papo reto, neguinho, tava indo roubar?'".
Agora, o entregador é taxado de ladrão. "Quem me conhece, sabe que eu sou
do bem. Mas quem não conhece, me tira de criminoso. Ando na rua sempre com
medo, não vivo mais."
Do tempo no presídio, Tiago lembra da dificuldade da mãe diarista e
desempregada para enviar alimentos, roupa e utensílios. "Quando ela não
tinha dinheiro, um amigo, um parente ajudava, fazia vaquinha. Fizeram até um
abaixo-assinado, com 500 e poucos nomes, pra me libertar. Mas não
adiantou."
A defensora pública Rafaela Garcez, que acompanha o caso, diz que em 14 anos
exercendo a função nunca viu uma mesma pessoa ser incriminada tantas vezes por
crimes que não cometeu como Tiago.
"É uma situação clara de injustiça, me comoveu. Ele está perdendo dois
anos da vida dele com essa inquietação, vivendo de sobressalto", diz.
"Não quero que uma pessoa que cometa crimes fique solta, mas também não
quero um inocente preso."
No pedido de habeas corpus feito ao STJ, a Defensoria do Rio, tendo o IDDD
(Instituto de Defesa do Direito de Defesa) como amigos da corte, lembrou que a
Justiça tem chancelado uma série de prisões ilegais em que a única prova é de
reconhecimento.
Foi o caso do DJ Leonardo Nascimento, 27, acusado erroneamente de latrocínio e
preso em janeiro de 2019 no Rio. Negro, ele foi reconhecido pessoalmente por
quatro diferentes testemunhas, ao ser colocado ao lado de duas pessoas brancas.
Só depois da prisão da dupla de verdadeiros criminosos e a busca do pai por
imagens de câmeras de segurança que o DJ teve a inocência comprovada.
Outro caso recente é o do violoncelista Luiz Carlos Justino, 23, preso em
setembro deste ano, também no Rio, por roubo com arma de fogo, após
reconhecimento por foto. Sem passagem pelo sistema prisional, a imagem dele
constava nos arquivos da Polícia Civil e foi apresentada a testemunhas ainda
que não houvesse qualquer investigação que o ligasse ao crime. Mas isso bastou
para a prisão. Depois, a Justiça decidiu que o reconhecimento não era
suficiente para mantê-lo preso.
"Virou praxe nas delegacias do país todo. Em crimes de roubo, se não houver
flagrante, não há nenhum tipo de investigação, como procurar por câmeras da
região, nada. Quando dá uns meses que o caso está lá no escaninho, o
investigador intima a vítima, mostra o álbum de suspeitos e induz ela a apontar
alguém", diz a defensora Garcez.
Ela afirma que diversas vítimas já disseram em audiência que tinham explicado
que estavam na dúvida, que só se parecia ou que não haviam reconhecido.
"O controle dos abusos na atuação policial é função do Ministério Público,
que, ao ter contato com esse tipo de inquérito, não deveria denunciar. Mas eles
denunciam, sem qualquer outra prova, e é a defesa que tem que fazer esse papel
e demonstrar que a pessoa não estava no local, porque, se não, a Justiça
condena", diz Garcez.
Com a absolvição do STJ, a defensora quer entrar com um habeas corpus
preventivo pedindo a retirada da foto de Tiago do álbum de suspeitos da
delegacia em Nilópolis. Absolvido em sete processos, ele ainda responde a dois,
cujas audiências estão marcadas para março.
O pedido de Ano-Novo Tiago já tem: parar de ser incriminado por crimes que não
cometeu.
Outro lado
A Secretaria de Estado de Polícia Civil (Sepol) do Rio Janeiro afirmou, em
nota, que recomendou que os delegados não usem apenas o reconhecimento
fotográfico como única prova em inquéritos policiais para pedir a prisão de
suspeitos.
"A Secretaria informa que o reconhecimento por foto, que é aceito pela
Justiça, é um instrumento importante para o início de uma investigação, mas
deve ser ratificado por outras provas técnicas na busca pela verdade."
Já o Ministério Público afirmou que "vem exercendo seu papel
constitucional de controle externo da atividade policial, fiscalizando a
legalidade das investigações em curso e das decorrentes ações penais".
"Informamos ainda que o reconhecimento fotográfico é reconhecimento de
coisa (foto) e não de pessoa. Por óbvio, traz menos certeza do que um reconhecimento
pessoal. Mas a qualidade da prova não pode ser confundida com sua validade.
Ambas as provas são válidas, mas devem ser avaliadas de acordo com o grau de
credibilidade adequado a cada uma", disse, em nota.
Segundo o MP, não é desarrazoado que uma denúncia se baseie em reconhecimento
fotográfico, se outros elementos também derem um grau mínimo de credibilidade
para que uma acusação seja feita.
"Pinçar alguns casos em que houve reconhecimento por fotografia em sede
policial e absolvição em juízo não é suficiente para desmerecer o
reconhecimento de coisas. Isso só mostra que o sistema é capaz de corrigir
equívocos antes de chegar a uma condenação injusta", afirmou. (Via: Folhapress)
Blog: O Povo com a Notícia