“É difícil você ter que escolher quais pacientes devem receber oxigênio suplementar. Os que têm mais chances”. O relato é de um médico do Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), em Manaus, um dos epicentros da crise sem precedentes que escala na capital do Amazonas.
A cidade registrou ao menos duas mortes nesta quinta-feira por causa da falta de oxigênio nas unidades de saúde colapsadas pelo aumento das internações por Covid-19. As cenas de desespero das equipes médicas e de parentes ao redor dos centros de atendimento se multiplicaram, numa situação que é crítica e não têm solução imediata, admitem agora as autoridades do Estado e do Governo federal, depois de meses de negligência com o avanço da pandemia. No momento, há uma corrida desesperada tanto para transportar cilindros de oxigênio na própria capital como para importar o insumo até via fluvial de outras partes do país. Enquanto isso, tenta-se transferir pacientes estáveis para outros Estados.
Ao longo do dia, o médico do HUGV, que preferiu não se identificar, contava que todos os pacientes lá internados deveriam receber uma fração mais baixa de oxigênio, uma vez que os estoques só eram suficientes para cobrir oito horas. No Instagram, o médico intensivista Anfremon D’Amazonas, que também trabalha no Hospital Getúlio Vargas, contou a operação hercúlea montada para tentar salvar os pacientes apesar da falta de O2. Primeiro colocaram todos de bruços (pronar, no jargão médico), para melhorar a oxigenação. Depois, a corrida para trazer pequenas quantidades de oxigênio usadas em outros setores do hospital. “A gente conseguiu salvar quem dava, quem podia”, lamentou.
No Serviço de Pronto Atendimento (SPA) e na Policlínica Dr. José de Jesus Lins de Albuquerque, na zona centro-oeste da cidade, a busca por transporte de cilindros de O2 mobilizou famílias de pacientes internados e até mesmo policiais, convocados para reforçar a segurança em frente às unidades de saúde. Há relatos de familiares que pagaram do próprio bolso para garantir oxigênio aos doentes. No SPA do Coroado, no leste, ao menos dois pacientes morreram à espera de atendimento.
“Considero que sim, há um colapso no atendimento de saúde em Manaus, a fila para leitos cresce bastante, estamos hoje com 480 pessoas na fila”, admitiu o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, em uma transmissão ao vivo ao lado de Jair Bolsonaro nesta quinta-feira e falou das ações da Força Aérea Brasileira (FAB) para levar oxigênio até a cidade. Nesta semana, Pazuello esteve no Amazonas e usou sua entrevista a jornalistas no local para cobrar a aplicação do “tratamento precoce” contra a Covid-19 usando cloroquina. Trata-se de uma obsessão da Administração federal que não tem respaldo científico no mundo, apesar de ser chancelado por entidades de classe médicas no Brasil.
“Nosso Governo, um Governo que eu votei, tem sido negacionista. Relativiza tudo, banaliza tudo”, seguiu criticando o médico Anfremon D’Amazonas. “A última coisa foi dizer que o que está acontecendo em Manaus foi por falta de tratamento precoce. Dizer isso é uma sacanagem com quem trabalha sério. O Governo tem que preparar o país para a segunda onda, porque ela é devastadora e está levando vidas”.
Recorde de mortes nos primeiros 14 dias de janeiro
Em meio à comoção pelo colapso no atendimento, pacientes com quadro clínico estável começaram a ser transferidos para outros Estados. O Governo do Estado anunciou a remoção inicial de 90 pessoas para os Estados do Maranhão, Piauí e Distrito Federal nesta quarta. Estão previstas ainda transferência de outros 145 com a ajuda da Força Aérea Brasileira nos próximos dias para o Rio Grande do Norte e Goiás.
A operação tenta desafogar a demanda por oxigênio que registrou um aumento de 160% em relação ao primeiro pico da doença, nos meses de abril e maio de 2020. Na ocasião, o consumo máximo foi de 30 mil metros cúbicos/mês. No segundo pico, o consumo passou a 76 mil metros cúbicos por dia, segundo o principal fornecedor do gás ao Governo do Estado, a fábrica White Martins. A empresa afirma que este quantitativo é quase o triplo da capacidade nominal de produção da unidade local, de 28 mil metros cúbicos, após ampliação.
No momento, há 2.205 pessoas internadas nas redes pública e privada, num cenário de escassez de leitos e de UTIs. Em mais de dez meses de crise, não houve aumento da capacidade efetiva de atendimento intensivo do Estado, toda concentrada em Manaus, apenas remanejamento de alas para serem dedicadas ao combate da covid-19. O Amazonas contabiliza mais de 5.900 óbitos, num Estado com uma população de 4,2 milhões habitantes. Nesta quinta, foi dia de mais recordes: o Estado registrou o maior número de infecções em um único dia, 3.816 casos nas últimas 24 horas, totalizando 223.360 infectados. Nos primeiros 14 dias de janeiro, foram 1.654 mortos por todas as causas na cidade. É mais do que todos os sepultamentos realizados desde o auge da pandemia, em abril, até dezembro: 1.285 óbitos, um número catapultado pela pandemia. (Via: El País)
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