Da sacada do apartamento em que mora com os pais, Santiago tem conhecido
o mundo. Com 1 ano e 4 meses, ele passou um quarto da vida completamente dentro
de casa por causa da pandemia do novo coronavírus.
“Depois de três meses em total isolamento, decidimos dar uma volta no
quarteirão com ele e a reação foi muito impressionante. Ele ficou muito
empolgado em ver um cachorro e uma criança. Ele descobriu que eles existem fora
de uma tela”, contou a psicóloga Aluene Silva, 38, mãe do menino.
Há quatro meses em isolamento, famílias com crianças pequenas têm identificado
mudanças no comportamento e no desenvolvimento infantil com a restrição de
convívio social. Os pais relatam atrasos na fala, alterações do sono, humor e
apetite e até mesmo regressão para a faixa etária dos filhos.
Para especialistas, a crise sanitária provocou uma ruptura brusca em um
fator importante no desenvolvimento da primeira infância, a rotina. Mesmo
crianças que não frequentavam a escola sofrem com as mudanças impostas, como a
falta de contato com outras pessoas e a vivência fora de casa.
É o caso de Santiago, que ainda não frequentava a escola, mas estava
acostumado a ver outros parentes e passear em parques e praças. No início da
pandemia, ele começava a falar as primeiras palavras, mas, com o convívio
restrito apenas aos pais, o desenvolvimento parece ter parado.
“Ele estava começando a falar ‘mamãe’ e ‘papai’ e agora parou. Como
estamos só nós três em casa, nos comunicamos com ele quase que por telepatia.
Nós entendemos o que ele quer só pelo olhar, acho que isso o desafia menos a
aprender”, disse Aluene.
Para Lia Miranda, 2, a mudança de rotina foi ainda mais intensa. Ela
estudava em período integral e passava dez horas do dia na escola. Ela tinha
começado o desfralde um mês antes da suspensão das aulas. “Ela estava evoluindo
bem, mas, sem ir pra escola, ela desaprendeu a pedir para ir ao banheiro. Tinha
que trocar a roupa dela até 8 vezes no dia”, contou a mãe Júlia Miranda, 30,
advogada.
Depois de algumas semanas, a famílias conseguiu completar o desfralde,
mas as mudanças no comportamento ainda são sentidas. Segundo Júlia, a menina
está mais dependente e irritadiça.
“Ela pede atenção e colo o tempo todo, o que não acontecia antes. Também
não brinca sozinha e antes era bem independente na escola”.
Júlia também disse estar preocupada com o desenvolvimento social da
filha, que perdeu a vontade de acompanhar as aulas por vídeo e não pergunta
mais dos amigos da sala. No início da pandemia, Lia pegava a mochila e dizia
que ia para a escola.
“Nas primeiras semanas ela ficava muito feliz em ver os amigos e a
professora, depois ela ficava irritada em ter que acompanhar. Parecia uma
obrigação e, então, decidi não forçar mais”, contou.
A fisioterapeura Janaína Mussi, 37, também viu a mesma mudança com o
filho Davi, de 5 anos, nos últimos meses. No começo das aulas a distância, o
menino gostava de ver os amigos pelo vídeo, mas depois de algumas semanas
começou a chorar e pedir para não fazer mais as atividades.
“Ele queria conversar com amigos, contar o que estava fazendo, mostrar
os brinquedos. Começou a ficar irritado por ter que ficar quieto, esperar a vez
dele”, contou. Ela também notou alterações no apetite e comportamento do
menino, que também pedido mais atenção e chorado com mais frequência.
“Como ele só está convivendo com adultos, parece que ele se sente menos
motivado a amadurecer. Brinco bastante com ele, mas sei que não o estimula da
mesma maneira que brincar com crianças da mesma idade”.
Para Stefania Merenstein, 35, a falta de contato com crianças da mesma
idade também já traz consequências para seu filho Benjamin, 3. Ele não tem mais
vontade de falar com os amigos da sala por vídeo, apesar de gostar de falar com
os avós dessa forma.
“Ele só gosta de falar com adultos, parece que se acostumou a só ter
contato com pessoas mais velhas. Com as crianças da mesma idade, ele não tem
paciência para conversar por vídeo ou telefone”, contou. Benjamin também está
mais ligado aos pais e não quer mais dormir sozinho na própria cama.
Paula Albano, psicanalista e psicóloga escolar, explicou que a memória e
o desenvolvimento das crianças, especialmente até os 5 anos, estão ligados à
experimentação, por isso, as alterações se manifestam mais rapidamente do que
em outras faixas etárias. Privadas de novas experiências, as crianças recorrem
a comportamentos anteriores, que já dominavam.
“Estamos vivendo algo inédito e nem mesmo os adultos têm repertório para
lidar com todas essas privações, medos e inseguranças. É uma situação
comparável a guerras, desastres naturais. Para a criança, é ainda mais difícil,
por isso, ela busca situações em que se sente mais segura, quer mais atenção
dos pais, mais colo, chora mais”.
Professora do Departamento de Neurociências da Faculdade de Medicina de
Ribeirão Preto da USP, Maria Beatriz Linhares afirmou que é preciso mais
tolerância com comportamentos regredidos, porque são a forma como as crianças
lidam com a ansiedade e estresse.
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