Desde 2016 o Brasil exporta o couro do animal para a produção de um remédio sem comprovação científica, mas bastante popular na China. O mercado movimenta bilhões de dólares no país asiático, embora seja acusado de exterminar a espécie em diversos locais.
A Justiça Federal decidiu suspender o abate de jumentos no Brasil para exportação à China. A medida foi tomada por 10 dos 13 desembargadores da Corte Especial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), em Brasília, na noite da quinta-feira (03).
Desde 2016, o Brasil passou a exportar a couro do animal para a produção
de um remédio conhecido como ejiao, bastante popular na China.
Não há comprovação científica de que ele funcione, mas, no país
asiático, o ejiao é utilizado com a promessa de tratar diversos problemas de
saúde, como menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual. Ele
é consumido de várias maneiras, como em chás e bolos.
Para fabricar o produto, os animais são recolhidos da caatinga e de
zonas rurais do Nordeste em grande volume, sem que exista uma cadeia de
produção que renove o rebanho, como ocorre com o gado.
Ou seja, eles são abatidos em uma velocidade maior do que a capacidade
de reprodução, o que acendeu um alerta de que a população de jegues pode ser
eliminada nos próximos ano no Nordeste.
PAULO AFONSO
No final de dezembro, uma reportagem da BBC News Brasil mostrou que cidades do centro-sul da Bahia se tornaram dependentes economicamente do abate de jumentos, alguns deles levados da cidade de Paulo Afonso (link abaixo):
No entanto, o setor cresceu em consonância com o aumento da fome e da
pobreza em uma região historicamente já castigada por esses problemas, além de
denúncias de maus-tratos, contaminação de animais por mormo (uma doença
mortal), trabalho análogo à escravidão e abandono de jegues à morte por
inanição.
A decisão do TRF-1 é mais um passo jurídico de uma ação que corre desde
2018, quando entidades de defesa do direito dos animais entraram com um
processo solicitando a proibição. Em um primeiro momento, a Justiça da Bahia
concedeu uma liminar proibindo os abates no Estado.
Em 2019, porém, a medida foi suspensa por Kassio Nunes Marques, hoje
ministro do STF e à época desembargador do TRF-1. Ele voltou a liberar os
abates atendendo a um pedido dos governos estadual e federal, além prefeitura
de Amargosa, onde funciona o maior frigorífico de abates de jegues do país.
O magistrado concordou com o argumento de que a proibição do mercado
prejudicava a economia do município e da Bahia.
Nesta quinta-feira, a maioria dos desembargadores do TRF-1 refutou esse
argumento, alegando que a prefeitura de Amargosa não conseguiu provar os
supostos prejuízos econômicos provocados pela suspensão inicial do setor.
“Não se demonstrou (no argumento) a existência de uma grave lesão à
economia pública”, afirmou o desembargador Carlos Eduardo Moreira Alves, que
votou pela nova suspensão. Segundo ele, também não ficou ficou comprovada a
existência de uma cadeia produtiva para abate no Brasil, o que coloca a espécie
em risco. “Não há noticia de que haja rastreabilidade em cadeias de produção ou
algo semelhante com que ocorre com o abate de gados”, disse.
Já o desembargador Carlos Augusto Pires Brandão, que também votou pela
suspensão, citou a importância cultural do jumento para o Nordeste brasileiro.
“O que se vê nos autos é que a exportação é proveniente de um animal que
está muito associado às nossa tradições, à nossa colonização e à nossa inserção
no interior do Brasil”, disse.
“Há músicas e poemas sobre o jumento. Há uma música do Luiz Gonzaga
(Apologia ao Jumento) que fala que o animal é nosso irmão, que relata essa
proximidade do jumento como um animal de estimação. Imagina se a gente começa a
exportar carne de cachorro e de gato para outras culturas que não têm essa
proximidade com o animal”, disse.
A decisão foi comemorada por ativistas que há anos lutam contra o
mercado de ejiao no Brasil.
“Recebemos a decisão com muita felicidade, com sentimento de que vale a
pena lutar pelo que é o correto. O abate de jumentos é inaceitável do ponto de
vista ético, ambiental e cultural. Não existe motivo para exterminar um animal
que faz parte da nossa história, uma espécie com tantos laços afetivos com o
Brasil”, diz a advogada Gislane Brandão, coordenadora-geral da Frente Nacional
de Defesa dos Jumentos, uma das entidades que entrou na Justiça contra o setor.
A suspensão do abate vale para todo território nacional, mas ainda cabe
recurso. Além disso, há outros processos na Justiça e investigações do
Ministério Público sobre esse mercado.
Mercado lucrativo
Estima-se que o mercado de ejiao movimente bilhões de dólares por ano. Uma peça
de couro de jumento, por exemplo, pode ser vendida na China por até U$ 4 mil
(cerca de R$ 22,6 mil) — uma caixa de ejiao sai por R$ 750.
No Brasil, os valores do comércio são bem menores — jegues são
negociados por R$ 20 no sertão do Nordeste, e depois repassados aos chineses,
conforme mostrou a BBC News Brasil em dezembro.
A alta demanda e lucratividade fizeram com que empresários chineses
mirassem o Brasil, país com uma população abundante de jegues — em 2013, havia
900 mil deles, a maior parte no Nordeste, segundo o IBGE. Hoje, de acordo com o
Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), há por volta de 400
mil. Entre 2010 e 2014, o Brasil abateu 1 mil jumentos — já entre 2015 e 2019,
foram 91,6 mil.
Em relatório recente, o Conselho Regional de Medicina Veterinária da
Bahia (CRMV-BA) afirmou que, sem uma cadeia produtiva, o ritmo dos abates e a
demanda chinesa pelo ejiao poderiam praticamente dizimar a população de
jumentos no Nordeste em poucos anos.
Apenas em Amargosa, são abatidos 4,8 mil animais por mês — 57,6 mil por
ano. Há outros dois frigoríficos com permissão para a atividade nas cidade de
Simões Filho e Itapetinga, também na Bahia.
Com 40 mil habitantes, Amargosa é o ponto final do jumento nordestino
antes de ele ser abatido e exportado para virar remédio na China. Desde 2017, o
município abriga o frigorífico Frinordeste, local onde mais se abate jegues no
país. Ele é comandado pelos chineses Ran Yang e Zhen Yongwei, ambos residentes
no exterior, e pelo brasileiro Alex Franco Bastos.
Em entrevista recente à BBC News Brasil, o prefeito de Amargosa, Júlio
Pinheiro (PT), afirmou que o setor é o terceiro maior empregador da cidade,
atrás só da própria prefeitura e de uma fábrica de sapatos. Para ele, o recente
mercado é fundamental para a economia do município, gerando cerca de 150
empregos diretos, além de renda e impostos.
“O frigorífico têm ajudado na geração de renda e de empregos diretos,
ainda mais num momento tão complicado da economia do país, sobretudo com a
pandemia. O frigorífico tem sido a sustentação de centenas de famílias aqui na
cidade”, disse Pinheiro.
A BBC News Brasil tentou ouvir o frigorífico, mas não obteve resposta.
População de jegues
O mercado de ejiao é acusado por autoridades e ativistas de atuar de maneira
extrativista. Ou seja, ele vai até onde os animais são abundantes, abate a
maior parte da população e deixa o local. Ele afetou inclusive a população de
jumentos na própria China, segundo um estudo dos pesquisadores Richard Bennett
e Simone Pfuderer, da Universidade de Reading, no Reino Unido.
Em 2000, o país tinha por volta de 9 milhões de cabeças — em 2016, o
número caiu para 2 milhões. Em 2000, a produção anual de eijiao era de 1,2
tonelada — já em 2016, foram 5 toneladas. Estima-se que o país precise de 5
milhões de peles de jumento por ano, mas, desde 2017, o estoque interno não é
mais capaz de suprir a demanda.
A solução de parte do empresariado chinês foi buscar animais em outros
países, como o Quirguistão, que perdeu 57% de seu rebanho desde 2017, segundo
estudo da ONG The Donkey Sanctuary. Países como Mali, Gana e Etiópia
recentemente proibiram o abate, embora ele ainda ocorra clandestinamente. (Via: BBC News)
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