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Uma reportagem especial produzida pela BBC News Brasil e divulgada nesta quarta-feira (22) pelo portal G1 colocou Paulo Afonso, Bahia, como um dos principais fornecerdes para o abate de jegues com a finalidade da produção de um composto medicinal na China.
A BBC News Brasil investigou o mercado que cresce em meio ao aumento da
fome e do desemprego — além do risco de eliminação da espécie.
De acordo com a reportagem, os animais de Paulo Afonso e região são
levados para a cidade de Amargosa onde funciona o Frinordeste, hoje o principal
frigorífico de abate de jumentos do país, cuja planta industrial pertence à
JBS, mas foi arrendado por dois cidadãos chineses e um brasileiro. Nele, cerca
de 1,2 mil animais são abatidos todas as semanas para posterior exportação à
China, segundo funcionários ouvidos sob a condição de anonimato.
Eles são mortos com um tiro de ar comprimido entre os olhos. Depois, o
couro é retirado, embalado em caixas e levado para a China, onde é transformado
em uma gelatina que é usada para produzir o ejiao, um produto medicinal
bastante popular e lucrativo da Tradicional Medicina Chinesa. A carne
normalmente é separada e exportada para o Vietnã.
Não há comprovação científica de que o ejiao funcione, mas, no país
asiático, ele é utilizado para tratar diversos problemas de saúde, como
menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual. Ele é consumido
de várias maneiras, como em chás e bolos.
Paulo Afonso – a pobreza e abate
Os animais são recolhidos em vários pontos do Nordeste, como nos
arredores da cidade de Paulo Afonso, no norte da Bahia, a 534 km do
frigorífico. Eles são pegos ou comercializados por agricultores pobres que
trabalham no setor para fugir da fome, sob a supervisão de fazendeiros.
Um desses núcleos tinha um sertanejo em situação de fome como
personagem. Em abril, ele foi abordado pela Polícia Militar depois de uma
denúncia anônima apontar furto de jegues em Paulo Afonso, além de supostos
maus-tratos.
Com ele foram encontrados 13 animais, embora ele tenha negado os furtos.
Segundo o Boletim de Ocorrência, os jegues estavam em “claro estado de
maus-tratos”, machucados, e sem água e comida por pelo menos três dias. Mas os
jumentos não eram do sertanejo.
No BO, ele narra que recebia R$ 20 por animal recolhido, o único
sustento da família. “Com esse dinheiro é que estava vivendo, utilizando-o para
comprar leite para os meninos, fraldas e comida para a casa”, narra o
documento.
Diz ainda que era a segunda vez que ele caçava e vendia jumentos, mas
que não tinha dinheiro para alimentá-los. “Narra que os pegou apenas para
colocar o que comer para o filhos.”
Quem comprava os jegues do sertanejo era um policial civil e fazendeiro
chamado Antônio Fernando Filho, de 59 anos, morador da cidade de Rodelas,
também no norte da Bahia.
No BO, ele afirmou que tinha mais de 100 em sua fazenda e que os
repassava aos chineses — também argumentou que alimentava os animais e seguia
todas as regras sanitárias.
Em entrevista à BBC News Brasil por telefone, Filho diz que trabalhou na
área por dois anos, mas parou depois do caso narrado acima. Ele ainda tem 30
animais em sua fazenda, mas diz que o local foi arrendado por outra pessoa, que
recolhe jegues no interior do Piauí e do Maranhão. “Estão todos comendo feno e
bebendo água do rio”, afirma.
O fazendeiro afirma que recebia uma comissão dos frigoríficos de até R$
50 por animal coletado — era um complemento para sua renda como policial civil
de Rodelas.
“A gente pegava no mato, na estrada, em qualquer lugar. Quando juntava
uns 50, colocava num caminhão e enviava pro frigorífico em Amargosa, Simões
Filho e Itapetinga (locais de outros abatedouro licenciados).”
Mas, nos últimos meses, o comércio na região de Paulo Afonso diminuiu
muito, diz. “Tem muito jumento ainda, mas eu parei também porque tem muita
concorrência hoje, todo mundo atrás de jumento pra vender pros chineses. Aqui
quase não tem mais animal, caiu 80%. Mas o povo precisa, está muito
necessitado.”
Morte e maus-tratos
Depois de recolhidos, os animais percorrem mais de 530 km de caminhão
até a Chapada Diamantina, onde são armazenados em fazendas arrendadas nas
cidades de Iaçu, Milagres e Itatim, a cerca de 40 km do destino final em
Amargosa.
No dia 18 de novembro, a reportagem encontrou cerca de 20 jegues em uma
área de Caatinga, às margens de uma rodovia praticamente deserta que liga as
três cidades. Eles estavam sozinhos, pastando, algumas fêmeas grávidas e um
filhote — um dia depois, desapareceram do local. Havia vegetação e água porque
tinha chovido dias antes, mas nem sempre é assim.
Em 9 de julho deste ano, por exemplo, a Polícia Militar da Bahia recebeu
uma denúncia: centenas de jumentos que seriam abatidos no Frinordeste estavam
morrendo de fome e sede na fazenda Boa Esperança, em Itatim. Quem os encontrou
foi o tenente Benjamin Pereira e Silva, comandante do pelotão da PM na cidade.
“Infelizmente a situação era pior do que imaginávamos. Eram uns 200
animais, que tinham vindo da cidade de Rodelas. Eles estavam bem debilitados,
machucados, muitas fêmeas prenhas, muitas abortando. Não tinha mais capim nem
água, nenhuma comida para eles. Era uma área totalmente árida.”
“Encontramos muitos animais mortos, com urubus em cima. Não havia nenhum
tipo de apoio de equipe veterinária. Levamos o gerente para a delegacia e ele
foi autuado por maus-tratos”, relata o tenente.
“No dia seguinte, voltamos à fazenda e não havia mais nenhum animal.
Todos foram levados para outro lugar”, diz o policial.
Não foi a primeira vez que isso aconteceu. Em 2019, centenas de jegues
foram encontrados em situação parecida nas cidades de Canudos e Itapetinga,
também no interior da Bahia. Nestes casos, os animais seriam destinados a
outros abatedouros, não o de Amargosa.
Em Canudos, estima-se que 200 dos cerca de mil jumentos encontrados
morreram de inanição. Os outros estavam bastante debilitados. No local, foram
encontrados dois imigrantes chineses, responsáveis por cuidar do rebanho.
“Eram dois jovens que não recebiam salário para trabalhar ali. Não
falavam português, tivemos que usar o Google Tradutor”, conta Patrícia
Tatemoto, PHD em biologia e pesquisadora da ONG britânica The Donkey Sanctuary,
que atua na defesa do jumento contra o mercado de ejiao.
“Quando os encontramos, eles não tinham comida na fazenda, estavam com
fome, não tinha nem banheiro. O laudo da polícia apontou que eles estavam em
trabalho análogo à escravidão.”
Os dois imigrante ainda foram autuados por maus-tratos, mas nunca mais
foram vistos na região de Canudos.
A população de Amargosa, cidade do centro-sul da Bahia, sofre com um
dilema envolvendo o jumento, o jegue, uma tradicional espécie do Brasil e
símbolo histórico da luta diária do sertanejo. O município, a 119 km de
Salvador, se tornou dependente de um mercado que cresce a cada ano, mesmo sob a
acusação de colocar a existência do animal em risco.
Na cidade funciona o Frinordeste, hoje o principal frigorífico de abate
de jumentos do país, cuja planta industrial pertence à JBS, mas foi arrendado
por dois cidadãos chineses e um brasileiro. Nele, cerca de 1,2 mil animais são
abatidos todas as semanas para posterior exportação à China, segundo
funcionários ouvidos sob a condição de anonimato.
Eles são mortos com um tiro de ar comprimido entre os olhos. Depois, o
couro é retirado, embalado em caixas e levado para a China, onde é transformado
em uma gelatina que é usada para produzir o ejiao, um produto medicinal
bastante popular e lucrativo da Tradicional Medicina Chinesa. A carne
normalmente é separada e exportada para o Vietnã.
Não há comprovação científica de que o ejiao funcione, mas, no país
asiático, ele é utilizado para tratar diversos problemas de saúde, como
menstruação irregular, anemia, insônia e até impotência sexual. Ele é consumido
de várias maneiras, como em chás e bolos.
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