Era abril de 2019 quando Jair
Bolsonaro jogou luz sobre um esquema que vem drenando os cofres públicos ao
longo dos anos. Em sua tradicional live semanal, o presidente disse que dois
terços dos pagamentos do seguro-defeso – um benefício a pescadores artesanais
garantido na época em que as espécies estão em período de reprodução – são
fraudados. O porcentual não é novidade.
Desde 2017, a Controladoria-Geral da União (CGU) estima que são irregulares 66% dos desembolsos do seguro-defeso, que somaram, em 2018, 2,89 bilhões de reais, valor suficiente para bancar o reajuste do salário mínimo anunciado nesta semana. A novidade agora é que o governo identificou com mais detalhes o nível de informalidade e de descuido que favorecem a sangria dessa verba pública.
VEJA teve
acesso a levantamentos sigilosos de órgãos da administração responsáveis pela
triagem dos beneficiários. Em um dos casos, uma suposta pescadora aparece
cadastrada no sistema que reúne os Registros Gerais de Pescadores (RGP) como
“Caloteira Safada”. Nas tabelas encaminhadas ao governo para o pagamento do
seguro, “Caloteira Safada” está registrada como pescadora artesanal no Espírito
Santo, mas um cruzamento de seus números de CPF e de NIS aponta que ela atuaria
como pescadora a mais de 3.000 quilômetros das terras capixabas. “Caloteira
Safada” sacou parcelas do seguro-defeso entre 2013 e 2018 nos municípios de São
Sebastião da Boa Vista, Soure, Ponta de Pedras e Salvaterra, todos no Pará. Os
pagamentos só foram interrompidos após o caso dela cair em uma peneira feita
pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), responsável por analisar os
requerimentos de seguro e habilitar os benefícios.
O governo
suspeita que “Caloteira Safada” seja personagem de um antigo esquema de fraude
no seguro-defeso: a atuação de atravessadores especializados em arregimentar
pessoas para se cadastrarem como pescadores artesanais, mesmo que jamais tenham
exercido a profissão, e depois levá-las até agências bancárias para o
recebimento ilegal do benefício. No esquema, o atravessador fica com parte dos
valores recebidos. O assédio a pessoas para se registrarem como falsos
pescadores é comum no período pré-eleitoral e estará no foco de fiscalização
nos meses que antecedem as eleições municipais de outubro. A atuação de políticos
como atravessadores já levou o Tribunal Regional Eleitoral do Pará (TRE-PA) a
cassar o mandato do então deputado estadual Paulo Sérgio Souza, conhecido como
Chico da Pesca.
Uma das
principais fragilidades no registro geral de pescadores (RGP) é o fato de ele
ser declaratório. Para se habilitar a receber até quatro salários mínimos na
época do defeso, desde 2014 basta preencher um protocolo a mão, similar a um
recibo vendido em papelarias. Outro gargalo no programa é o fato de que,
segundo o governo, desde 2008 não há monitoramento pesqueiro para verificar se
o defeso está sendo suficiente para preservar as espécies em época de
reprodução. Técnicos do governo afirmam que, sem o monitoramento, é possível
que sejam desembolsados valores anuais para preservar espécies que não precisam
de proteção ou para supostamente proteger animais que sequer são explorados
comercialmente.
Um caso extremo detectado por
integrantes do Ministério Público são regiões do país com rios e açudes secos
há anos e com portarias de defeso ainda vigentes. As falhas nos RGPs levaram a
uma situação insólita: enquanto o Instituto Nacional de Geografia e Estatística
(IBGE), por meio do PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) detectou,
em 2015, 297.000 pescadores artesanais, o número de registros feitos pela
própria população supostamente pescadora atingiu 1,05 milhão. Ou seja: a
“Caloteira Safada”, em vez de exceção, parece ser a regra.
Na
teoria, o seguro-defeso é elegível exclusivamente a pescadores artesanais
inscritos no RGP, com atividade de pesca de forma ininterrupta, que tenham
comprovantes de comercialização do produto pescado e que estejam em áreas em
que portarias governamentais dizem que deve ser preservado o período de
reprodução de determinada espécie.
As
fragilidades e fraudes no seguro levaram ao crescimento exponencial de
pagamentos do benefício nos últimos dez anos – 467% na comparação com 2008. “O
que o defeso está passando hoje o INSS passou nas décadas de 80 e 90″, disse a
VEJA, sob condição de anonimato, um dos responsáveis por detectar as fraudes.
Nos anos 90, o país conheceu uma das mais famosas fraudadoras do INSS. Jorgina
de Freitas atuava em um esquema que utilizava o nome de pessoas mortas para
receber benefícios previdenciários. Jorgina foi condenada a 14 anos de prisão.
O patrimônio roubado pela quadrilha dela, segundo cálculos da Advocacia-geral
da União (AGU), beira os 2 bilhões de reais. (Via: Veja)
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