Desde o início do terceiro mandato de Lula, o governo aposta em medidas destinadas a aumentar a arrecadação para tirar as contas públicas do vermelho. Diante dos protestos contra o peso da carga tributária, só recentemente passou a trabalhar também num plano de redução de gastos, prometendo, inclusive, revisar o pagamento de benefícios sociais.
Essa iniciativa é meritória, mas esbarra num entrave político: até aqui, o presidente da República resiste a aprimorar alguns de seus programas de estimação, com medo de que regras adotadas para combater irregularidades e desperdícios de recursos públicos sejam interpretadas como cortes na área social. Eterno candidato, Lula prefere a propaganda fácil à eficiência, e quem paga a conta, como de costume, é o contribuinte.
Duas das principais bandeiras do PT na área da educação, exploradas à exaustão em períodos de campanha eleitoral, ilustram bem a situação. Projetado há mais de 25 anos para reduzir o abismo que existe entre o ensino universitário e a fatia mais carente da população, o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) é um dos mais vistosos programas da gestão Lula. Financia a juro zero mensalidades em centenas de instituições privadas de ensino, tem quase 2,6 milhões de jovens pendurados em linhas de crédito e, pela primeira vez, reservará neste ano vagas exclusivas para quilombolas, indígenas e pessoas com deficiência. Na teoria, é uma vitrine da política educacional do PT. Na prática, é uma iniciativa quase insustentável. Responsável há mais de dez anos por escrutinar as raízes do problema, o Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu em uma nova auditoria que o governo não tem informações mínimas para medir sequer a necessidade de existência do Fies, que, entre 2010 e 2022, tem saldo devedor de mais de 110 bilhões de reais e amarga taxas de inadimplência acima dos 51%.
Não se sabe, por exemplo, se os estudantes permanecem nos cursos, se conseguem empregos melhores depois de formados, se o endividamento dos alunos compensa a perspectiva futura de carreira ou se as graduações ofertadas atendem às necessidades do mercado de trabalho. Sob todos os aspectos, o Fies é uma usina de problemas. Segundo o TCU, o programa foi lançado, ainda no governo de Fernando Henrique Cardoso, sem que tivessem sido tabuladas nem mesmo as necessidades educacionais mais prementes do país. Até hoje, não há metas de acesso pleno à graduação, políticas contra a evasão escolar, estudos sobre permanência no curso ou estatísticas sobre quais resultados o Fies produziu em mais de duas décadas. Nada disso parece incomodar Lula e o PT, que fazem questão de convidar para eventos públicos um ou outro aluno que credita à iniciativa a oportunidade de cursar a universidade. Nessas ocasiões, convenientemente, só a história pessoal de superação é destacada.
Ano após ano, o TCU tem repetido o puxão de orelha e cobrado, entre outras coisas, controle governamental, ofertas racionais de vagas, medições de empregabilidade dos formados e argumentos que justifiquem a manutenção de uma plataforma que não se paga sozinha, as receitas chegaram a menos de 27% das despesas no período de 2013 a 2022. “A ocorrência de taxa de inadimplência superior a 50% dos contratos, as concessões de condições especiais de descontos na cobrança de mais de 300.000 contratos do Fies, resultando em descontos de aproximadamente 10 bilhões de reais, e a existência de subsídios implícitos de aproximadamente 95 bilhões de reais representam gastos com o Fies que encarecem o programa, não retornam aos cofres públicos (ou retornam em valor inferior ao previsto) e não favorecem a sustentabilidade do programa”, concluiu o tribunal. Por influência do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, o governo foi obrigado recentemente a reconhecer o peso do Fies nas contas públicas e teve de abrir mão de 10 bilhões de reais com a renegociação das dívidas de alunos inadimplentes. Em casos específicos, o desconto chegou a 99%.
Em campanha quase solitária para equilibrar o orçamento, Haddad dificilmente virá a público criticar o calote no projeto de crédito estudantil. O Fies e outro programa celebrado pelo PT, o Universidade para Todos (ProUni), serviram de trampolim político para o ministro quando, em meados dos anos 2000, ele saltou da condição de funcionário de segundo escalão do Ministério da Educação para chefe da pasta. Lula gostou tanto de seu desempenho na função que fez do Fies e do ProUni bandeiras da campanha presidencial de Dilma Rousseff e, dois anos mais tarde, ungiu Haddad candidato a prefeito de São Paulo. Na seara administrativa, o ProUni também foi alvo de auditoria do TCU. Criado para oferecer a fundo perdido bolsas de estudo integrais e parciais em instituições privadas de ensino, saiu de pouco mais de 112 000 vagas no primeiro processo seletivo, em 2005, para o recorde de 402 000 neste ano. Entre as descobertas do tribunal, auditores concluíram que em muitos casos o Fies disputa espaço com o ProUni pelo mesmo perfil de estudante, dos vinte principais cursos contemplados pelos dois programas, 80% deles são oferecidos tanto pelo ProUni quanto pelo Fies.
Ainda há um agravante: ao analisar o universo de alunos que pediram renegociação de dívidas do crédito estudantil nos últimos anos, o TCU detectou que 84% dos acordos foram feitos com pessoas que também estariam enquadradas no perfil de renda elegível para bolsas integrais do ProUni. Isso significa que, se o Executivo priorizasse o Universidade para Todos, uma parcela significativa de universitários poderia ter se formado sem contrair dívidas, e o governo não teria precisado arcar com custos como manutenção da fiança do estudante, pagamento de taxas à Caixa (foram 200 milhões de reais em quatro anos) e isenções de crédito dadas a estabelecimentos de ensino que aderiram ao financiamento estudantil. Procurado, o Ministério da Educação informou que vai “adotar todas as medidas pertinentes” e disse que a Secretaria de Educação Superior “não medirá esforços para cumprir as determinações apontadas, como forma de aperfeiçoar cada vez mais os programas e ações sob sua responsabilidade”.
Juntos, Fies e ProUni transformaram instituições privadas de ensino em uma das categorias empresariais mais prósperas do país, porque elas se beneficiam de isenção fiscal para abrir cada vez mais as portas aos estudantes, sem necessariamente ofertar um ensino de qualidade. “A auditoria realizada pelo TCU acende um alerta importante sobre a qualidade do ensino superior no Brasil, especialmente em cursos tão procurados como o de direito”, diz o presidente da OAB Nacional, Beto Simonetti. O curso foi o mais escolhido por estudantes do Fies e do ProUni entre 2014 e 2021. Dos mais de 100 000 inscritos no último exame da OAB, apenas 17% foram aprovados. Antes de a dupla Fies e ProUni estar sob o fogo cruzado do TCU, era o Bolsa Família, e seu dispêndio mensal de mais de 14 bilhões de reais pagos aos beneficiários, um dos mais relevantes projetos do governo auditados pelo tribunal. A falta de controle no Cadastro Único, que identifica as famílias de baixa renda, e na transição do antigo Auxílio Brasil para o atual Bolsa Família levou o TCU a contabilizar prejuízos de 34 bilhões de reais no maior programa de transferência de renda do país.
Responsável pelo Bolsa Família, o ministro Wellington Dias informou ao TCU que, desde a auditoria do ano passado, 15,3 milhões de famílias tiveram a renda atualizada, 1,2 milhão foram desligadas por não atenderem aos critérios para receber os repasses e mais de 900 000 foram excluídas por problemas cadastrais. “O controle externo é muito importante porque, a partir de relatórios assim, temos mais segurança na tomada de decisão e no planejamento. Já encontramos 3,7 milhões de benefícios que tinham fraude e conseguimos fechar a porta para esses desvios”, disse Dias. “Combater a fraude é importante não como estratégia de equilíbrio fiscal, mas para que o próprio país tenha eficiência em suas políticas sociais”, acrescentou. O esforço para melhorar o gasto, aliado ao planejamento e à fiscalização, é a melhor receita para garantir a saúde e a sobrevivência dos programas. (Via: Veja)
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