De uma joalheria para uma
escola em São Gonçalo (RJ). Esse foi o atípico percurso feito no ano passado
por recursos recuperados na Operação Lava Jato — e que deverá ser seguido por
outros milhares de euros, dólares e francos suíços em breve.
Prestes a completar cinco anos, a investigação que desnudou um esquema de
corrupção na Petrobras e em outros entes públicos pelo país se prepara para
criar um inédito e bilionário fundo anticorrupção, a ser investido em projetos
de educação, cidadania e transparência.
Em paralelo, outros recursos recuperados em delações, acordos de leniência
e multas judiciais foram aplicados na reforma de escolas públicas no Rio, num
formato que se estuda replicar pelo país.
"Serão milhões de reais por ano. É um legado permanente",
afirmou à Folha o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa da
Lava Jato no Ministério Público Federal do Paraná.
No total, a Lava Jato estima já ter recuperado pelo menos R$ 3 bilhões até
aqui, entre valores repatriados, multas e recursos devolvidos por delatores e
empresas.
No Paraná, a Procuradoria é a atual curadora dos valores que darão origem
ao bilionário fundo anticorrupção. O primeiro aporte foi feito em janeiro:
foram R$ 2,5 bilhões pagos pela Petrobras, como parte de um acordo da estatal
com o Departamento de Justiça americano.
O dinheiro deve render cerca de R$ 160 milhões por ano. Metade dos valores irá para eventual ressarcimento de investidores da Petrobras que acionem a estatal na Justiça.
A outra metade será administrada por uma fundação independente, a ser
formada por membros e entidades da sociedade civil, que farão a seleção de
projetos anticorrupção a serem financiados.
O formato não é convencional na Justiça brasileira. Mas é uma prática comum — e com bons resultados — em outros países, diz o diretor-executivo da Transparência Internacional no Brasil, Bruno Brandão.
"É uma novidade no Brasil, mas não é uma novidade fora", afirma,
citando o caso da multinacional alemã Siemens, que, após ter admitido desvios
pelo mundo, foi obrigada pela Justiça a fazer investimentos em políticas
anticorrupção em vários países.
O fundo da Lava Jato, estabelecido em acordo entre a Petrobras, o Ministério
Público Federal e o Departamento de Justiça americano, pode bancar ações
"que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção".
Entram na lista estudos sobre transparência, programas voltados a
populações afetadas pela paralisação de obras da Petrobras e até a reparação de
direitos afetados pela corrupção, inclusive difusos, como saúde, educação e
meio ambiente.
É algo semelhante ao que já ocorreu no Rio de Janeiro, onde parte dos
valores recuperados pela força-tarefa da Lava Jato foi direcionada à segurança
pública e à reforma de seis escolas estaduais com graves deficiências
estruturais.
No caso das escolas, a iniciativa foi concebida pela procuradora da
República Maria Cristina Manella Cordeiro, especializada em educação, que
idealizou a parceria entre o Ministério Público e o governo estadual. Os R$ 19
milhões investidos vieram de multas pagas por diretores da joalheria H. Stern,
que fizeram delação premiada.
"É uma nova forma de atuar. Em vez de ficar correndo atrás do
prejuízo, a gente previne", disse Manella à Folha.
As iniciativas também coincidem com críticas ao chamado ativismo judicial,
quando o Judiciário extrapola suas competências e se imiscui na atividade de
outros poderes.
Os procuradores refutam a acusação e afirmam que continuam cumprindo seu
papel de defender os interesses da população. "A gente tem que saber até
aonde ir. A escolha das escolas a serem reformadas, por exemplo, partiu da
secretaria da Educação, para não invadir a competência do poder público",
afirma Manella.
Para o juiz Marcelo Bretas, que autorizou a aplicação dos recursos, a
iniciativa está "em total consonância" com a lei, que estabelece que
multas compensatórias por crimes com vítimas indiretas podem ser destinadas a
entidades públicas ou privadas com atuação social.
No Rio de Janeiro, a ideia ainda está em execução: para assegurar a lisura
dos investimentos, o termo de cooperação técnica, assinado um ano atrás, exigiu
a licitação de projetos executivos, que ficaram prontos recentemente.
Só agora vai começar a licitação das obras, num processo fiscalizado pelo
FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação). "E o risco de dar
essa verba ao estado, para depois desviarem tudo de novo?", comenta a
procuradora. "A gente tinha que dar transparência a esses recursos."
No caso do fundo bilionário, a governança será feita por uma fundação. O
MPF articula a criação da entidade, em parceria com outros órgãos do poder
público e da sociedade civil, num processo a ser homologado pela Justiça.
O termo de acordo prevê a consulta de pelo menos cinco entidades para a
indicação de nomes à fundação, a criação de um conselho fiscal, a vedação a
qualquer membro com atuação partidária e a prestação mensal de contas.
"A crítica [de exacerbação do papel do judiciário] seria razoável se
o Ministério Público determinasse, de maneira discricionária, o destino dos
recursos. Mas não é isso que está acontecendo", diz Brandão. "Eles
não estão se apropriando dos recursos; estão envolvendo para a sociedade."
Para ele, todos os fundos públicos, em especial os que congregam recursos
judiciais (de multas, acordos ou indenizações, por exemplo), deveriam seguir o
mesmo formato.
"Da forma como é hoje, esses fundos acabam sendo contingenciados para
fazer superávit", afirma. "Há um descontrole muito grande; há
pouquíssima transparência ou governança."
A parceria para as reformas de escolas no Rio, por exemplo, já foi
replicada na Procuradoria de Goiás, e deve ser estendida a outros estados.
Outras organizações também defendem a iniciativa.
"É um recurso que volta à sociedade em forma de prevenção, que cria
uma cultura da integridade", afirma Roni Enara, diretora-executiva do
Observatório Social do Brasil.
"Onde começa a corrupção? Começa com pequenos desvios que são
tolerados pela população. A gente precisa falar na ponta, e precisa de
investimento para isso", diz.
A fundação que irá administrar o fundo bilionário da Lava Jato ainda está
em criação. O Ministério Público Federal estima que esse processo dure até
meados deste ano. (Via: Folhapress)
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