A criação da força-tarefa da Secretaria de Defesa Social (SDS) contra o crime organizado em Pernambuco, na última semana, sequer foi anunciada pelo governo do Estado — bem diferente do que ocorreu com o grupo nos mesmos moldes criado para combater as investidas violentas em instituições bancárias, em agosto de 2017.
A portaria jazia discretamente em um emaranhado de decisões burocráticas da SDS e foi trazida à tona pelo editor Raphael Guerra, do blog Ronda JC, na última quarta-feira – o texto é de 23 de outubro e foi publicado no boletim de 27 de outubro da SDS.
É óbvio que o poder público fareja algo não muito republicano se movendo nas sombras. Em depoimento ao próprio Ronda JC, o promotor do Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), do Ministério Público, Frederico Magalhães, deixa claro que já há em curso uma guerra entre facções criminosas em boa parte do Estado. E que os sete meses de pandemia – e de uma certa paralisia no aparelho estatal de justiça e segurança – serviram para esses grupos se ramificassem por várias regiões de Pernambuco, mais notadamente no Agreste e Zona da Mata.
Os conflitos fizeram com que o índice de homicídios, vindo de uma tendência de recuperação desde o catastrófico ano de 2017, voltasse a subir. Ainda segundo o Gaeco, 52 cidades do Estado já tinham, em outubro, ultrapassado a quantidade de assassinatos registrados em todo ano de 2019. É quando voltamos ao início desse texto e sobre a razão de o governo não ter anunciado a força-tarefa contra o crime organizado: mais do que uma resposta, a criação do grupo é um movimento do poder público no sentido de tentar entender o tamanho da bronca. Fazer uma radiografia, saber quem é quem na fila do pão.
O texto da portaria que institui o grupo deixa isso bastante claro. O governo considera “a amplitude e complexidade da atuação do crime organizado, bem como sua estruturação macro, alcançando todos os entes federativos, necessitando atuação proporcional e coordenada por parte do Estado”.
As expressões “estruturação macro” e “alcançando todos os entes federativos” dão uma preciosa dica. Mesmo sem nomes, a referência aos bois é clara – por trás de conflitos no varejo das drogas no País há a sombra dos maiores atacadistas do mercado: facções como Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV) e Família do Norte (FDN). A onipresença, claro, é da facção paulista surgida após o massacre do Carandiru, em 1992, e que se transformou no maior motor da criminalidade no País. O PCC é hoje um monstro tentacular que movimenta, segundo dados do Ministério Público de São Paulo divulgados na última semana, R$ 1,2 bilhão por ano com o comércio de drogas. Dinheiro que circula das mais variadas formas, principalmente lavado através de uma sofisticada rede de empresas fantasmas e em nome de laranjas do grupo.
Não à toa, os tentáculos da organização – que há muito já cobriram todo o Brasil, além da região da Tríplice Fronteira com Paraguai e Argentina – se estendem pela Europa, África e chegam agora aos EUA. A conexão dos paulistas com a ´Ndrangheta, a mais violenta máfia italiana e “dona” dos principais portos do país, é conhecida pelas principais forças policiais do mundo.
A pergunta é: e na nossa Terra dos Altos Coqueiros, qual a real inserção das facções nacionais e seu poder de articulação sobre os grupos locais? Que relação teriam com os homicídios registrados aqui grupos criminosos que lucram rios de dinheiro mandando cocaína para vários continentes? Ou seria uma peleja de pequenos grupos locais sem conexão com grandes organizações criminosas?
A má notícia é de que a presença de facções como o PCC, de um e outro “irmão” (como se denominam os integrantes do grupo criminoso) no nosso sistema prisional, passou para células bem definidas operando fora dele. A fuga de 27 detentos da Penitenciária de Limoeiro, no Agreste do Estado, no dia 9 de julho, é um exemplo claro. Homens armados de fuzis explodiram o muro da unidade, foram pessoalmente até o pavilhão dos detentos mais perigosos — onde haveria integrantes da facção – e os resgataram. Em qualquer época, digamos, mais normal, essa investida seria notícia nacional e motivaria drásticas mudanças na cúpula e na estrutura do sistema carcerário. Mas o estado de exceção provocado pela pandemia acabou minimizando a ação.
Recados do PCC também fizeram com que policiais a agentes penitenciários do interior do Estado solicitassem remoção de algumas cidades, com medo de retaliações. Um policial civil com histórico de linha dura no combate ao tráfico na região de Surubim, no Agreste, foi morto no dia 30 de maio com um tiro de fuzil, em plena luz do dia, em uma das ruas mais movimentadas do município, num claro recado às forças de segurança. O comissário José Rogério Duarte Batista, 56 anos, já tinha inclusive solicitado reforço devido às ameaças que recebia do tráfico.
Relatos do MPPE dão conta de que as facções se estabeleceram em municípios como Casinhas e Surubim, no Agreste, e Escada, na Zona da Mata. O objetivo seria garantir um maior controle sobre as rotas de circulação da “mercadoria”.
Ainda de acordo com as forças de segurança, as facções locais têm suas “parcerias” com as nacionais — além do PCC, seu antigo aliado e hoje maior rival, o Comando Vermelho (CV), do Rio de Janeiro. Operam com uma mesma lógica, apenas em mercados diferentes. Em vez de contêineres de cocaína que seguem para a Europa em sofisticadas operações de embarque e desembarque nos portos, para esses grupos criminosos fica o varejo do varejo: crack de quinta qualidade para uma multidão de pessoas em situação de vulnerabilidade, além de roubos de cargas e outros delitos.
Mas não é por não possuírem lanchas, mansões e armamento sofisticado que as facções locais são menos violentas. O caso mais recente de crime de recado — aquele para demarcar território, tanto frente aos rivais como ao poder público – foi a chacina de Rurópolis, em Ipojuca, no dia 9 de agosto, quando cinco pessoas foram mortas e 12 ficaram feridas. No último dia 22 de outubro a Polícia Civil conseguiu cumprir nada menos que 25 mandados de prisão contra integrantes dessa facção, muitos dos quais já estão no sistema prisional.
O fato de já sentirmos no nosso quintal a presença dos barões do crime organizado e de suas “crias” representa um perigo claro. Os exemplos da Colômbia dos anos 1980 e 1990, além do que ocorre atualmente no México mostram que a ascensão de facções criminosas, se não for freada em tempo e com um esforço coordenado dos poderes públicos e da sociedade, pode representar uma séria ameaça à própria ordem democrática. Grupos criminosos como estes não têm qualquer pudor em assassinar policiais, juízes, promotores ou políticos para mostrar que ditam as regras. Do submundo do tráfico ao das milícias, procuram uma simbiose com o aparato estatal para corrompê-lo desde dentro. Precisam ser enfrentados e sufocados. Antes que o próprio Estado de Direito acabe sendo tragado pela criminalidade.
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