Por Felipe Vieira - JC Online
Filho
de uma família de classe média, Paulo (nome fictício) mal lembra o dia em que
foi preso, em 2014, aos 29 anos. Segundo relato da polícia, estava sem camisa,
com arma na cintura, praticando pequenos assaltos em um bairro de uma capital
do Nordeste. Não se preocupava sequer em ocultar o rosto ou o revólver. Roubava
para suprir o avassalador vício no crack, que o consumia há pelo menos dois anos. Na prisão, tinha
tudo para virar um “zumbi”, denominação para viciados que topam as mais
variadas “paradas” no cárcere – incluindo matar desafetos internos de
traficantes – para obter crack.
O destino de Paulo mudou quando a Justiça do Estado em que ele foi preso
entendeu que os crimes foram motivados pela dependência e que parte da pena
deveria ser cumprida com internamento – monitorado judicialmente – para
livrar-se do vício. Paulo foi mandado para uma comunidade terapêutica privada
do Grande Recife. Três anos depois, se diz livre. “Da minha pendência com a
Justiça e do crack.”
Movimento nacional no sistema de justiça e segurança defende que
dependentes químicos (drogas lícitas ou ilícitas) cujos crimes de menor
potencial ofensivo foram praticados sob influência do vício sejam submetidos a
tratamento paralelamente à pena que cumprem. Chamado de Justiça Terapêutica,
prevê a análise de cada caso para possível encaminhamento via judicial, caso
comprovado o alto grau de dependência.
Cerca de 70% dos detentos no sistema prisional de Pernambuco respondem
pelos crimes de tráfico, roubo ou homicídio, segundo Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias (Infopen), do Ministério da Justiça, de 2014. Não se
sabe o número de usuários e dependentes. No mês passado, a Secretaria-Executiva
de Ressocialização (Seres) iniciou levantamento para saber quantos reeducandos
usam drogas. Segundo os defensores da Justiça Terapêutica, muitos poderiam ter
chance de cura, longe da cadeia.
“Quando a pessoa atinge esse estágio, não controla mais a própria vida.
E se comete delitos sob influência da doença, precisa ser encaminhada para
tratamento, pois ele não existe no sistema prisional”, comenta o juiz titular
da Vara de Execuções de Penas Alternativas, Flávio Fontes de Lima, que coordena
o Centro de Justiça Terapêutica do Tribunal de Justiça de Pernambuco (TJPE).
Ele atesta a eficiência da prática da Justiça Terapêutica em sua tese de
doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). Por dois anos, analisou os
prontuários dos sete Centros de Atendimento Psicossocial para álcool e outras
drogas do Recife durante dois anos. Ele verificou que os dependentes
encaminhados pelo sistema de justiça (Judiciário, Ministério Público e Polícia)
para tratamento tiveram quatro vezes mais sucesso nas internações do que os que
seguiam voluntariamente. “Na maioria das vezes, o dependente se interna
voluntariamente porque perdeu emprego e família.” A tese é de que nesses casos
a motivação é maior.
É o caso de José (nome fictício). Preso por roubo a banco, já tinha um
histórico de dependência em crack. Na cadeia, a situação piorou. “Trafiquei lá
dentro para poder consumir.” Há cinco meses, devido a uma decisão da Justiça,
José trocou uma das maiores unidades prisionais do Estado por uma comunidade
terapêutica no Grande Recife. A tornozeleira eletrônica dá a pista de que José
ainda cumpre pena.
O Centro de Justiça Terapêutica do TJPE atendeu, no primeiro semestre
deste ano, 382 pessoas. Localizada no Fórum Rodolfo Aureliano, na Ilha Joana
Bezerra, área central, a unidade tem psiquiatra, psicólogos e assistentes
sociais para auxiliar no diagnóstico do transtorno de dependência.
ALTERNATIVA PARA POUCOS
Mas a
possibilidade de tratamento, infelizmente, não é para todos. Cada vez com menos
centros públicos de internação, restam as comunidades terapêuticas, a maioria
privada. As pessoas ouvidas pela reportagem têm o tratamento bancado pelo plano
de saúde da família. “É preciso expandir esse tipo de tratamento e formar novas
pessoas. Nós já recebemos cinco egressos do sistema prisional e todos estão em
recuperação”, diz o terapeuta Luis Filipe Pineza, que coordena uma comunidade
terapêutica.
O secretário
estadual de Desenvolvimento Social, Infância e Juventude (a cuja pasta está
vinculada a política estadual sobre drogas), Roberto Franca, admite não
conhecer em detalhes como funciona a Justiça Terapêutica. “Mas acredito que
tudo que venha para ajudar os dependentes seja benéfico.” A Secretaria de
Ressocialização informa que, em três meses, vai iniciar a discussão, dentro das
unidades prisionais sobre possíveis ações voltadas para o tratamento e
prevenção do uso de drogas.
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