A família do senador Marcelo Castro (MDB) comanda o órgão público responsável por obras rodoviárias no Piauí e, ao mesmo tempo, empresas privadas contratadas mediante licitação para executá-las.
Com isso,
vários contratos e aditivos para intervenções em rodovias e BRs do estado,
bancadas por verbas federais e estaduais, são chancelados por meio da
assinatura de sobrinho — em nome do poder público — e tio — pelo lado privado,
ou de primos.
Por indicação
de Marcelo Castro, o engenheiro civil José Dias de Castro Neto, um de seus
filhos, comanda o Departamento de Estrada de Rodagens (DER) do Piauí desde
2017. A nomeação foi feita pelo governador Wellington Dias (PT), aliado da
família Castro.
Ao menos três
empresas que venceram licitações para realizar obras rodoviárias no estado, nos
últimos anos, são de familiares do senador e do diretor do DER — irmãos,
sobrinho e primo de Marcelo Castro.
Dados
repassados por Castro Neto mostram que as empresas comandadas por seus parentes
foram responsáveis por obras no valor de R$ 212 milhões desde 2017, cerca de 20%
do total desembolsado.
O senador e o
seu filho afirmaram que seguem estritamente a lei, que tudo se deu por meio de
licitação aberta a qualquer empresa interessada no país e que os valores dos
contratos tocados pelas empresas de familiares são condizentes com o tamanho de
cada uma delas.
Eles
ressaltam ainda o fato de a maior delas ter décadas de atuação, com obras em
vários estados do país. “Dizem, ‘ah, mas é sobrinho’. É sobrinho. Mas é uma
empresa que não foi constituída a partir da chegada do meu filho ao DER. A
chegada dele não pode ser um impeditivo, desde que as empresas participem da
licitação”, afirma Marcelo Castro.
“Se eu
pudesse impedir, impediria”, disse Castro Neto sobre a participação de empresas
de parentes, afirmando, porém, não ter instrumento legal para barrá-las (veja
posição detalhada ao final deste texto).
Não há falta
de norma legal que impeça a situação. Licitações de DERs de outras unidades da
federação, como Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Distrito Federal, além das do
Dnit (o órgão nacional de infraestrutura de transportes), proíbem expressamente
a participação de empresas de familiares de dirigentes dos órgãos.
Essas
vedações são baseadas, entre outras normas, na súmula 13 (antinepotismo) do
Supremo Tribunal Federal e na lei 12.813/13, que dispõe sobre conflito de
interesses na administração federal.
Além de a
situação que envolve a família Castro ter potencial de infringir os princípios
constitucionais da impessoalidade e moralidade, a nova Lei de Licitações
(14.133, de abril de 2021) estabelece em seu artigo 14 que parentes até o
terceiro grau de dirigentes dos órgãos públicos não poderão disputar licitação
ou executar o contrato.
Essa lei
entrou em vigor em abril de 2021 e desde então pode ser aplicada. Com o intuito
de dar um prazo de adequação, porém, ainda permite-se o uso até março de 2023
da antiga Lei de Licitações (8.666/93) — que já ressalta em seu artigo 3º a
observância dos princípios constitucionais da impessoalidade, moralidade,
igualdade e probidade administrativa.
A principal
empresa dos familiares é a Construtora Jurema, de dois irmãos do senador,
Humberto Costa e Castro e João Costa e Castro.
Em junho do
ano passado, por exemplo, o Diário Oficial do Piauí publicou o sexto termo de
aditamento ao contrato de obras da BR-343 com as assinaturas do sobrinho Castro
Neto, pelo DER, e do tio João Costa e Castro, pela Juremarinho e tio.
A Jurema é
uma empresa de grande porte, com décadas de atividade e obras em outros
estados. O Portal da Transparência do governo federal aponta que ela recebeu R$
529 milhões ao longo dos anos.
Só em 2020 a
empresa figura como destinatária de R$ 13 milhões identificados como frutos das
emendas do relator-geral do Orçamento (código RP9), direcionadas por meio de
indicações de congressistas.
O Ministério
da Infraestrutura não informou quem foram os autores das indicações. Marcelo
Castro disse ter usado em 2019 as RP9, mas afirma não saber se elas resultaram
em obras tocadas por empresas de familiares.
No DER-PI, a
Jurema figura como a segunda empresa que mais contratos obteve de 2017 a 2021,
após participar das licitações: R$ 152 milhões – só atrás da Construtora Hidros
(R$ 184 milhões).
A Jurema e
seus dois irmãos, entre outros parentes, financiaram campanhas de Marcelo
Castro, que foi deputado federal de 1999 a 2018. Nas eleições de 2014, por
exemplo, as últimas em que foi permitido o financiamento empresarial, a Jurema
e seus donos doaram R$ 180 mil, em valores da época.
As outras
empresa de familiares do senador que mantêm contratos com o DER do Piauí são as
construtoras Icaraí, de Mathias Neto Maia Machado e Castro — filho de um dos
donos da Jurema e sobrinho de Marcelo Castro—, e Renata, de Lourival Nogueira
de Araújo Filho, primo dos Castro.
Uma obra
dessa última, no valor de R$ 18 milhões, foi visitada em agosto de 2021 por
Castro Neto e seu pai. Nas redes sociais, o diretor do DER-PI ressaltou que o
senador “destinou recursos para essa grande obra”.
O diretor
executivo da Transparência Brasil, Manoel Galdino diz que esse tipo de situação
que deve ser evitado, mesmo com licitação.
“Você coloca
um risco à livre competição da licitação e não há isonomia porque é muito fácil
ter qualquer vantagem. Basta em uma conversa a pessoa ser favorecida”, diz,
afirmando ainda que o Tribunal de Contas da União deveria investigar a
situação.
O
ex-presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República Mauro
Menezes também afirma que as contratações merecem apuração.
“A nova lei
de licitações exige a observância da impessoalidade e da probidade administrativa”,
afirma, chamando a atenção, em especial, para os contratos assinados entre
sobrinho e tio. “A licitação deve ser anulada e o agente público tem que
responder pelo ilícito”.
Sem falar na
situação concreta, o advogado Roberto Barretto, doutor em direito de Estado
pela Universidade de Brasília, diz que, ao se constatar o vínculo familiar, a
comissão licitante deveria ter desqualificado a empresa.
“[A
assinatura do contrato] É flagrantemente ilegal, e há o dever de atuação do
Tribunal de Contas do Estado. Ele pode determinar cautelarmente a interrupção
do processo licitatório e do contrato administrativo. E há possibilidade de
propositura pelo Ministério Público de ação de improbidade administrativa e até
mesmo ação com base na lei anticorrupção”.
Marcelo
Castro, que foi ministro da Saúde no final do segundo mandato de Dilma Rousseff
(PT), exerce antiga influência na gestão rodoviária do Piauí. Durante os
governos Lula, ele emplacou um cunhado como chefe do Dnit no estado. Antes de
comandar o DER, seu filho foi secretário de Infraestrutura do governo.
Sou contra
contratar parentes, mas não há como impedir, diz chefe do DER.
Marcelo
Castro e seu Filho disseram que todas as obras ocorreram por meio de licitação,
sem qualquer favorecimento.
“Em uma análise
superficial, poder-se-ia pensar assim [conflito de interesses], mas em uma
análise mais profunda, não”, disse o senador. “A Construtora Jurema, que é de
dois irmãos meus, e que eu nunca tive nenhuma participação nela, trabalha para
esse órgão, o DER, há pelo menos 40 anos. É provavelmente a mais antiga empresa
de construção ainda viva no Piauí”, afirma.
Marcelo
Castro afirmou que problema haveria se novas empresas de parentes fossem
constituídas com o intuito de auferir lucros com a nomeação.
“Imagine: eu
sou político, a gente faz o entendimento com o governante, o Wellington Dias, e
cabe ao meu partido, o MDB, indicar alguns órgãos. E em um dos órgãos vai o meu
filho, que é engenheiro civil, completamente preparado. Quando chega lá, vai
fazer o que, romper os contratos?”.
Ele frisou
não haver lei que impeça a situação. “A empresa do meu irmão é uma das poucas
que faz estradas com qualidade aqui no estado. Se ficar proibida de trabalhar
no principal órgão de estrada do estado é um prejuízo não só para a empresa,
mas para o estado”.
Castro Neto
afirmou seguir estritamente a lei, ter dado tratamento igual e impessoal a
todas as empresas e que não tem meios legais de impedir a participação de
parentes.
“Sou contra,
acho que os parentes não deveriam ser partícipes das licitações, e
provavelmente essa situação acontece com todos os gestores do país. Se eu
pudesse impedir, impediria. É até uma sugestão à Câmara dos Deputados ou ao
presidente Bolsonaro, para que a lei seja mudada para dar essa ferramenta aos gestores”,
afirmou.
Sobre a
vedação explícita da nova lei de licitações, ele enviou resposta em que o setor
jurídico do DER-PI afirma não haver “como exigir o cumprimento integral do art.
14” da nova norma, devido ao prazo de dois anos de adaptação. “Logo, a lei que
rege as licitações do DER-PI ainda é a Lei 8.666/93, que não proíbe a
participação de parentes na licitação com o gestor do órgão, apenas com os
membros da Comissão de Licitação”.
Já o
governador Wellington Dias disse que Castro Neto preenche requisitos técnicos e
tem ótimo desempenho. “Os contratos foram feitos cumprindo regras legais.
Sabemos que neste período eleitoral é comum denúncias como esta e vamos seguir
cumprindo a legislação em vigor”.
A construtora
Icaraí afirmou, em nota, que os contratos “sempre ocorreram de forma idônea,
sendo atendidos os devidos critérios legais” e que zela pela transparência.
“Não há
qualquer registro de questionamento, por parte dos responsáveis pela
fiscalização, sobre a correção das medições de valores e a qualidade das obras
executadas”.
A Folha de S. Paulo não
conseguiu contatos com as outras empresas.
Acompanhe o Blog O Povo com a Notícia também nas redes sociais, através do Instagram e Facebook.
Blog: O Povo com a Notícia