Os evangélicos exercem forte influência sobre o pensamento nacional. Trata-se de um dado que passa ao largo da análise política. Quando muito merecem a lembrança bíblica: “dai a Deus o que é de Deus, e a César o que é de César. No mais das vezes, emerge o replicado dito constitucional sobre o Estado laico, que não deve se misturar à igreja, condição que separa as coisas da religião da esfera estatal.
Portanto, é claríssima a ideia de que a religião integra a vida privada
não adotando o Estado brasileiro de religião oficial nem privilegiando seitas.
Aos cidadãos, garante-se inteira liberdade de escolha de crenças,
diferentemente dos tempos do absolutismo, quando monarcas se investiam do poder
divino para justificar seus atos.
Na prática, porém, a teoria parece dar voltas em torno de seus eixos.
Pois os credos evangélicos assumem declaradamente posicionamentos inerentes ao
Estado, inclusive reivindicando poder material, seja por meio de domínio de
feudos na administração pública, seja trabalhando abertamente pela indicação de
ministros evangélicos para as Cortes, como ficou comprovado com a nomeação de
um ministro “terrivelmente evangélico”, André Mendonça, para compor o quadro de
11 ministros da Suprema Corte.
Ora, esse fato, tão banalizado que deixou de ser algo extraordinário e,
em tempos outros, condenado pela imensa maioria da comunidade social, torna-se
coisa trivial, a ponto de vermos, hoje, correntes evangélicas postulando a
nomeação de uns e queimando as chances de outros. A eleição para as Cortes da
Justiça passa, hoje, pelo crivo de pastores famosos, alguns sem pejo de
patrocinar abertamente perfis e grupos. O pastor Malafaia, como se sabe, é
interlocutor permanente do presidente nessa matéria.
A continuar a tendência de imbricação entre as coisas de Deus e as de
César, a barafunda tomará de conta da paisagem institucional. O IBGE calcula
termos mais de 42,3 milhões de evangélicos no país (dados de 2010), representando,
na época, 22,2% da população brasileira. No final de 2014, a projeção apontava
que os protestantes seriam 29% da população. Em 2020, pesquisa Datafolha
mostrou que os evangélicos já seriam 31% da população ou 65,4 milhões de
pessoas. O maior credo é o das Assembleias de Deus, cerca de 30% do total,
seguido pelas Igrejas Batistas, Congregação Cristã no Brasil e Igreja Universal
do Reino de Deus. Esta, aliás, tem vasta estrutura de comunicação, com seu
apoio bem disputado pelos políticos.
É preocupante o fato de que tais frentes religiosas usam o povo em sua
peregrinação para dominar o Estado brasileiro, bastando ver como algumas delas
usam o poder midiático para arrebanhar fiéis e manter os cofres cheios. Pelas
madrugadas, os cenários de catarse social eram comuns e hoje tais espetáculos,
com sua liturgia centrada nos milagres que “curam” doentes, podem ser vistos
até em horários noturnos, alguns bem cedo. A fé, nesse caso, em vez de remover
montanhas, serve como pá para arrecadar montes de dinheiro que obreiros e
assistentes recolhem em suas andanças pelos gigantescos espaços dos cultos.
As massas, tão perdidas nesses tempos de pandemia, não hesitam em pagar
o “ingresso” para adentrar o reino dos Céus, E tome grana, o, agora facilmente
captada por cartões de débito/crédito, e ainda por esse mecanismo criado pelo
Banco Central, o PIX. Na África, a Igreja Universal luta para não ser banida de
Angola, após ser investigada por desvio de dinheiro, discriminação e práticas
contra a integridade de religiosos angolanos. Até o bispo Marcelo Crivella não
recebeu agrément para exercer as funções de embaixador na África do Sul, por
suspeitas de que poderia ser uma alavanca para preservar em Angola a Igreja
Universal. E o bispo Macedo faz périplo internacional com o intuito de esticar
os braços de sua religião.
O fato é que o evangelismo no Brasil assumiu uma feição política,
puxando credos para a vala comum do oportunismo e do mercado da fé. Os
governantes, preocupados em manter boas relações com as Igrejas, por ver no
eleitorado evangélico rebanhos eleitorais, deixa a situação correr solta. Por
isso, Brasília e o entorno do Palácio do Planalto, antes um território
frequentado exclusivamente por políticos e suas equipes, agora é uma passarela
da fé.
As igrejas evangélicas, portanto, em vez de se constituírem em redutos
sagrados para elevar as preces dos crentes ao Senhor da Criação, se assemelham
a sucursais de grandes favores, muitos voltados para perpetuar o poder terreno
de grupos jamais preocupados com a salvação das almas. Tio Patinhas é uma
inocente figura do passado.
Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor titular da USP e consultor político.
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