“O bicho com sede não aumenta. O
cara bota uma vaca e, se não der água, ela morre. Só comida não cria sangue,
não. Sem água nada vai para frente.” O desabafo é do trabalhador rural José
Emídio de Souza, morador de Floresta, no Sertão de Itaparica. A cidade é
cortada pelo Eixo Leste do Projeto de Integração do São Francisco (Pisf), porém
“seu” Emídio – agricultor familiar, pescador artesanal e pequeno comerciante –
tenta driblar como pode a maior escassez de água dos últimos 50 anos.
Ele conta que, durante o período em que não conseguia pegar peixes,
recebia uma assistência de R$ 256,42 do programa estadual Chapéu de Palha. Há
cinco anos sem pescar, acabou perdendo a carteira profissional, o que ainda
prejudicou a contagem do tempo de trabalho para a aposentadoria. “Este ano deu
uma aguinha, na altura do pé. Deu umas piabinhas, mas morreu tudo, né? Só a
pessoa olhando para ver a situação na Barra do Juá”, lamentou.
Mesmo
com dois poços artesianos na propriedade, o sertanejo depende dos carros-pipa
da Prefeitura de Floresta para ter abastecimento. “Quando não trazem, pagamos
com nosso dinheiro. Dá uns R$ 300 para três a quatro casas. Se usarmos só pra
beber, dura uns três meses”, calcula. A esperança do agricultor é de que a
comunidade tenha acesso às águas que vê correr todos os dias no canal
recém-construído da transposição. “Se servir à Paraíba e não servir para aqui,
se for passar por nós e não tivermos direito, é ruim”, declara e engole seco ao
considerar que, talvez, ainda tenha de pagar pelo consumo.
Em março deste ano, a obra da
Transposição do Rio São Francisco foi tema de audiência pública da Comissão de
Agricultura da Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe) na terra de Emídio. Na Câmara de Vereadores de Floresta, moradores da região relataram que a água
do Velho Chico ainda não chegava às casas. A população, que enfrenta sete anos
seguidos de estiagem, também reclamou da possibilidade de cobrança pelo
abastecimento.
“Noventa por cento dos produtores de Riacho do Navio são agricultores
familiares. Eles não deveriam pagar nada”, pontuou, na ocasião, o coordenador
do Conselho dos Usuários do Açude Barra do Juá, Ricardo Souza. Atualmente seco,
o curso d’água, imortalizado na voz de Luiz Gonzaga, faz-se perene apenas na
lembrança que os moradores têm do tempo em que o afluente do Rio Pajeú
alimentava as feiras locais com as colheitas que regava.
Os valores a serem cobrados ainda não foram definidos pelo Governo
Federal, responsável pelo empreendimento, porém, consta nos termos de
compromisso da transposição que a cobrança da água e o pagamento dos custos de
operação e manutenção do sistema ao Operador Nacional – neste caso, a Companhia
de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) –
caberão aos Estados receptores.
O assistente da Presidência da
Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa), Sérgio Torres, explicou que,
pela Constituição Federal, “município não tem água, tem terra, e se o rio
percorre mais de um Estado, o curso d’água pertence à União”.“A Codevasf está
fazendo estudos para saber qual será o custo. No caso de Pernambuco, o Estado
ainda vai ter que definir o operador estadual, que fará o ‘meio de campo’ entre
o operador federal e os setores usuários da transposição. A Compesa é um desses
setores”, complementa. A coleta no manancial, o tratamento e a entrega da água
para o cidadão serão feitos pelas companhias de abastecimento estaduais.
Para o deputado Rodrigo Novaes (PSD), vice-líder do Governo na Alepe, o
sistema de cobrança precisa ser rediscutido. “Estão querendo que o Estado pague
uma conta de R$ 100 milhões para ‘tirar o custo’ da transposição dessa tarifa.
É um equívoco”, ponderou o parlamentar, defendendo, ainda, que a população de
baixa renda pague menos pelo consumo. “Conversei com o Governo do Estado e com
a Compesa para que, da mesma forma que há a tarifa social de água e energia nas
zonas urbanas, seja criada uma tarifa social da irrigação. É preciso, pelo
menos, um prazo de cinco a dez anos para que esses produtores possam se
reestruturar”, estima.
O preço é questão central para
quem espera ter acesso à água do Velho Chico. Um estudo do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) calcula o valor de R$ 0,13 por metro cúbico.
“Se no Vale do São Francisco existe uma quantidade enorme de colonos (moradores
das áreas atendidas pelos projetos de irrigação) que não estão podendo pagar os
atuais R$ 0,02 por metro cúbico cobrado pela Codevasf, como as pessoas vão
arcar com um valor cinco vezes maior?”, questiona o engenheiro agrônomo e
pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) João Suassuna.
Morador da cidade de Salgueiro, no Sertão Central, José Nilton Francisco
do Nascimento herdou do pai a esperança de receber a água da transposição – a
região integra o Eixo Norte do Pisf. “Quando os engenheiros chegaram, há dez
anos, meu pai sonhava em ver tudo pronto. Ele faleceu, mas minha mãe ainda está
viva para ver”, diz, empolgado.
Conhecido como “Bida” entre os vizinhos, o agricultor é só elogios à obra.
“Há seis anos, morávamos em uma casa de taipa e agora, numa de alvenaria.
Ganhamos uma cisterna de 50 mil litros, para encher com água de carro-pipa e
chuva”, conta.
Divorciado e pai de três filhos, ele não vê problema em pagar uma taxa
social pela água encanada que chega à sua casa duas vezes por semana, nem em
desapropriar parte do terreno onde vive para dar passagem a um ramal da
transposição. “Tem o transtorno, mas, depois, virão os benefícios, que serão
ainda maiores”, comemora, enquanto planeja o futuro: “Quando a água chegar, vou
plantar frutas, criar carneiro, fazer valer a pena os investimentos do
Governo”.
O Projeto de Integração do Rio
São Francisco (Pisf) é o maior empreendimento hídrico do Brasil. A prioridade é
o abastecimento humano e a dessedentação – ou seja, matar a sede – animal em
áreas afetadas pela estiagem. “Com a chegada do reforço hídrico do São
Francisco, a água local pode ser aproveitada para gerar renda e desenvolvimento
socioeconômico das famílias. Será viável, então, o suprimento de indústrias,
empreendimentos turísticos e agrícolas, por exemplo”, destaca, em nota, o
Ministério da Integração Nacional.
Apesar de 28% da população brasileira se concentrar no Nordeste, a região
possui apenas 3% da disponibilidade hídrica do País. Os dois eixos (Leste e
Norte) do Pisf somam 477 quilômetros de extensão e cortam quatro Estados:
Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba. A previsão é de que 12
milhões de pessoas em 390 municípios sejam beneficiadas pela transposição.
Desde março deste ano, o Eixo
Leste está em funcionamento, abastecendo 35 mil habitantes de Sertânia (PE) e
33 mil moradores de Monteiro (PB). Já o Eixo Norte está quase pronto, com 94,5%
das obras executadas e previsão de conclusão para o segundo semestre de 2017.
Para que a água dos canais chegue ao Agreste pernambucano, serão
necessárias, ainda, outras ações complementares, como a construção do Ramal do
Agreste, a ser finalizada em 2022. Ele ligará os canais do Eixo Leste à Adutora
do Agreste. Orçado em R$ 1,2 bilhão, o empreendimento terá 70,8 quilômetros de
extensão.
Enquanto o ramal não fica pronto, obras alternativas são implantadas para
aproveitar as tubulações já construídas da Adutora do Agreste e evitar o
desabastecimento da região. Entre elas, está a da Adutora do Moxotó, primeira
ligação da transposição com localidades do Sertão e do Agreste de Pernambuco. O
canal levará a água do Rio São Francisco até sete municípios: Arcoverde,
Pesqueira, Alagoinha, Sanharó, Belo Jardim, São Bento do Una e Tacaimbó. (Por Carly Falcão, no site da Alepe)
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