Poucas horas antes de deixar seu
gabinete, no 3.º andar do Palácio do Planalto, o presidente Michel Temer ainda
tinha ao seu lado, perto da mesa de trabalho, uma pequena imagem de Nossa
Senhora Aparecida moldada no vidro. “Vou viver comigo mesmo”, afirmou ele ao
jornal O Estado de São Paulo, quando questionado sobre o seu futuro.
Dono de alta impopularidade, Temer disse não acreditar que seu sucessor,
Jair Bolsonaro, destrua o que foi feito até agora sob sua gestão e apostou na
“continuidade”, com adaptações. “A gente está saindo da Presidência. A festa
não é mais minha, não é?”
De perfil semipresidencialista, o vice que assumiu o Planalto em 2016,
após o impeachment de Dilma Rousseff, vê dificuldades para mudanças na relação
com o Congresso, apesar do discurso de Bolsonaro avesso à negociação com
partidos. “Não há hipótese de você dizer: ‘Eu sou do Executivo e vou desprezar
o Congresso’. Isso nunca deu certo”, argumentou Temer, que foi três vezes
presidente da Câmara.
O sr. entregou um caderno para o presidente eleito, Jair
Bolsonaro, com a recomendação “Não há espaço para retroceder. As mudanças
precisam continuar”. Que mudanças são essas?
Aquelas que eu não pude ultimar. Vocês se lembram quando lançamos Uma
Ponte Para o Futuro, em 2015, que era uma contribuição para o governo, mas foi
vista como espécie de manifestação de oposição. Tudo o que fizemos está nesse
programa Começo pelo teto de gastos públicos, um gesto ousado. Esse teto está
dando resultado, tanto que, para o próximo orçamento, nossa previsão de déficit
é de R$ 139 bilhões, porque foi caindo. Depois veio a modernização trabalhista,
a reforma do ensino médio…
O futuro governo já indicou que quer mexer na estrutura das
estatais. O que o sr. acha disso?
Havia uma desmoralização fantástica das estatais. Nós recuperamos a
Petrobrás. Quando chegamos aqui, a ação do Banco do Brasil valia R$ 15, hoje
vale R$ 45. O patrimônio público aumentou três vezes. Correios só davam
prejuízo. A primeira vez que deu balanço positivo foi no primeiro semestre. E
assim foi com Eletrobrás, empresas públicas em geral, tudo fruto de um projeto
de lei que nós fizemos aprovar, aquela história de a empresa ser ocupada apenas
por técnicos. Em maio de 2016, o PIB era negativo em 5,4%; em dezembro, já era
3,6%. Este ano, não fosse a greve dos caminhoneiros, o PIB seria de 3,3%. Mas,
de qualquer maneira, vai ser positivo. Demos aumento para o Bolsa Família,
mantivemos o Minha Casa Minha Vida, o financiamento de curso superior…
O futuro governo determinou a realização de pente-fino em
medidas tomadas por sua gestão.
Eu não quero comentar isso.
As articulações políticas do governo Bolsonaro são feitas com
frentes parlamentares e não com partidos. Isso funciona?
Acho que as bancadas temáticas votam unanimemente nos temas do seu
interesse. É importante ter contato com líderes, com as duas Casas, presidência
do Senado e da Câmara. Na maior parte do tempo, eu fazia reunião dos líderes
com os presidentes das Casas sentados ao meu lado.
E como conter o toma lá, dá cá?
Não há isso. Eu fiz governo semipresidencialista e soube contornar as
dificuldades. Fiz o que a Constituição dizia, trouxe o Congresso para trabalhar
comigo. Eu sentia, no Congresso, que o Legislativo é uma espécie de apêndice do
Executivo. Se quiser excluir o Congresso, há dificuldade. Você quer a reforma
da Previdência, quem é que vai votar? É o Congresso.
Bolsonaro terá de rever esse posicionamento? Na prática, não
mudam as coisas?
Não muda a relação Executivo-Congresso. Não há hipótese de você dizer:
“Sou do Executivo e vou desprezar o Congresso”. Isso nunca deu certo. As
bancadas que foram chamadas ouviram o presidente Bolsonaro dizer: “Olha, vou
precisar muito de vocês”. Ele é do Parlamento. Quem vive 28 anos lá sabe como
são as coisas. Tenho a convicção de que ele saberá trabalhar com as bancadas
partidárias.
O MDB vai entrar na base aliada?
Acho que o MDB deve apoiar sempre as teses importantes para o País. Não
importa se está no governo ou não. Se ficar independente, apoiará o que for de
interesse do Brasil. Aqui nós temos um hábito cultural equivocado. Quando se
está na oposição acha que é preciso destruir o governo.
Depois de dois anos e sete meses no comando do País, e com tudo
o que o sr. enfrentou, que conselho daria a Bolsonaro?
Ele me perguntou: “Que conselho você me dá?”. Eu disse: “Olha, eu não dou
conselho para presidente eleito. Se quiser que dê palpite, eu dou”.
E qual seria?
É preciso aprovar a reforma da Previdência, porque completa-se um ciclo.
Outra coisa que eu gostaria de fazer mais para frente seria a simplificação
tributária. Mas o fundamental seria a Previdência. E eu não faria fatiada
porque, cada vez que você propuser uma reforma da Previdência, terá
resistências. Eu não estou fazendo pregação, porque parece até atrevimento dar
palpite em relação ao governo novo. Mas, como opinião, se você pegar aquilo que
já foi feito e levar para o plenário, fica mais fácil. Não tem como fugir dessa
questão da idade, do corte de privilégios. Se começar do zero, é claro que
haverá as mais variadas resistências.
Mas parece que não querem sua proposta.
Não vejo isso. Acho que eles acabam se ajustando. Quando resolvi lançar a
reforma, havia divergências. Nós chegamos a um ponto comum. Tenho absoluta
convicção de que isso ocorrerá também no governo eleito.
O presidente eleito afirmou que é horrível ser patrão no Brasil
e que vai aprofundar a reforma trabalhista. Ele não está desviando o foco de
mudanças mais importantes?
Não me parece, não. Só essa expressão do presidente eleito revela que nós
asfaltamos o terreno, porque as ações trabalhistas reduziram mais de 50%.
Acha que a intervenção federal no Rio deveria ser prorrogada?
Aí vai depender do novo governo. Mas não foi só intervenção que fizemos.
Veja que eu contei com o auxílio das Forças Armadas, com as chamadas GLO
(Garantia da Lei e da Ordem). Quem é que teve a coragem de assumir a questão da
coordenação, integração da segurança no País? Quem botou a mão na ferida fui eu
(batendo na mesa). Criamos o Ministério da Segurança e um Sistema Único de
Segurança Pública. Pela primeira vez houve ações integradas, com resultados
esplêndidos. A intervenção deu resultados. Houve redução de 12,6% nos
homicídios. Foram 5.800 vidas poupadas.
Mas a polícia matou mais…
É porque teve de enfrentar a criminalidade, não é?
A crise fiscal nos Estados não afeta a questão da segurança?
Eu acho que o tema da segurança é muito presente no próximo governo. Acho
que vai seguir. Pessoalmente, acho que o governo vai ser uma continuidade do
que foi feito, com as naturais adaptações. Não tenho dúvida. Dizer que o
governo vai destruir o que este governo fez eu não acredito.
Mas a política externa é diferente. O ministro Paulo Guedes
disse que não vai dar prioridade ao Mercosul, o Brasil pode abandonar o Acordo
do Clima de Paris…
No mundo globalizado, nós temos de sustentar a ideia do multilateralismo.
Não podemos desprezar a China, que é o nosso maior parceiro comercial. Com a
Argentina nós temos um superávit comercial significativo. E temos de manter as
relações mais sólidas com os Estados Unidos. O Brasil ainda não tem potencial
econômico, político, internacional que permita um isolamento.
O sr. vai procurar o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
para discutir um novo centro ou até criação de um partido?
Estou sempre com o presidente FHC. Acho que precisamos de uma grande
reforma política. É fundamental para reduzir o número de partidos. Falo até
pelo MDB. Não temos partido político. São siglas partidárias que vão se
amontoando. Discutir uma coisa dessa natureza vale a pena. Não sei se é criar
mais um partido. Agora, se esse “mais um” significar a agregação de 10, 15
siglas, aí vale a pena.
O sr. falou em pacificar o País, que continua dividido.
Bolsonaro conseguirá essa conciliação?
O Brasil continua dividido e é ruim. Mais do que pensar em um novo partido
seria pensar num grande pacto de unidade nacional, reunindo vários partidos,
PCdoB, PSB, MDB, DEM, PSL, lideranças, não importa de que tendência sejam. É
uma interação entre Executivo, Legislativo e Judiciário. Acho que o político é
mais ou menos como artista: serve de parâmetro. Se o cidadão vê que os três
Poderes estão unidos, isso já é um exemplo. Quando acaba a eleição, você tem de
partir para outro momento, no qual situação e oposição devem buscar o bem
comum.
O que o sr. vai fazer quando deixar o governo?
Vou viver comigo mesmo. Nunca tive tempo para isso. Só vivi comigo mesmo
quando ia de avião, de Brasília a São Paulo, e escrevia poemas no guardanapo.
Vou voltar para o meu escritório de advocacia e ver para onde a vida me leva.
Penso em escrever outro livro. Françoise Sagan escreveu um livro chamado Bom
dia, tristeza. Você percebe que era a vida dela.
O sr. elogiou Dilma Rousseff dizendo que ela era “honesta e
correta”. O sr. chegou a ser chamado de conspirador e golpista. Arrepende-se de
algo?
Não. Você disse bem: cheguei a ser chamado, mas nunca agi como tal. Tinha
divergência política, vocês sabem que ela (Dilma) me isolava. Mas, no plano
pessoal, acho que ela era uma pessoa honesta e correta.
Mas neste período em que o sr. ocupou a Presidência, sentiu
algum arrependimento?
Eu me arrependo um pouco de uma coisa, que é trivial, mas importante.
Tenho o hábito de receber todo mundo. Eu não me dava conta de que, às vezes,
marcava seis ou sete audiências e recebia 20 pessoas. Atendia sem agenda. Aí
houve aquele episódio do rapaz (Joesley Batista) que foi me gravar. A reforma
da Previdência seria aprovada em 2017, mas aí houve aquela trama, muito bem
urdida, e toda a denúncia que eu fiz veio à luz com a prisão dos indivíduos que
me detrataram.
O sr. já disse que foi pego pelo ângulo moral em investigações e
agora está deixando o cargo com uma terceira denúncia, no inquérito dos Portos.
Como responde?
Há uma diferença entre a figura do presidente e do cidadão comum É uma
maravilha fazer coisas contra o presidente. Quando você sai do foco político e
vai para o foco exclusivamente jurídico, e é o que vai acontecer a partir de
1.º de janeiro, as coisas mudam. Você vai debater o que está no processo.
Quando perder o foro, há quem diga que o sr. poderá enfrentar
pedido de prisão preventiva.
Não tenho a menor preocupação. Zero. Começou uma onda de que eu teria
assinado o decreto (dos Portos) para favorecer uma empresa chamada Rodrimar.
Mandaram uma certidão e essa empresa não é beneficiada. A rigor, o que deveria
ter sido feito com esse inquérito?
A Procuradoria-Geral diz que são relações antigas…
É verdade, crime da amizade. Aliás, posso dar uma relação de umas 50
pessoas que conviveram comigo, me ajudaram nas campanhas eleitorais, fizemos
sociedade advocatícia. Poderiam investigar 50, 60 pessoas, entendeu?
Mesmo com a baixa popularidade que tem hoje, o sr. acredita que
pode ter o trabalho reconhecido depois, como ocorreu com o ex-presidente Itamar
Franco?
Acho. Há poucos dias, fui almoçar num restaurante de classe média, em São
Paulo. Você sabe que, quando saí, fui aplaudido? Falei: “Puxa vida, eu posso ir
a restaurante, não é verdade?”. (Via: Estadão)
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