Aos 72 anos, Israel
Gouveia de Lima nunca foi de contabilizar os tiros que dá. Em sua conta, em
mais de três décadas de experiência no “negócio”, eles estão na casa dos
milhares. O número dos disparos subiu ontem (07), quando o aposentado, vindo de
Custódia, no Sertão do Estado, juntou-se aos bacamarteiros das cidades de
Solidão e Serra Talhada, e mais cerca de 500 bacamarteiros de 24 grupos de
Pernambuco e de Sergipe em um encontro no Cabo de Santo Agostinho, na Região
Metropolitana do Recife. Encontro que homenageia Zé da Banha, um torneiro
mecânico que criou os primeiros bacamartes de aço e fundou a Sociedade
dos Bacamarteiros do Cabo (Sobac).
Com o
bacamarte, que não era, segundo Israel Lima, um dos mais “possantes” do
encontro, Israel deu os seus tiros. A arma não era das mais “possantes”, mas
cumpriu a tarefa de anunciar que ontem o dia era de folia e, acima de tudo, de
celebração no Cabo. Os bacamarteiros percorreram as ruas centrais da cidade em
uma procissão em homenagem aos santos juninos. Á frente do cortejo, as
bandeiras de Santo Antônio, São João e São Pedro. Atrás das bandeiras, homens,
mulheres e crianças, animados por bandas de forró, de pífano e pelos estrondos
dos tiros.
“Os
bacamarteiros formam uma grande família. E a alegria de hoje é reunir essa
família, que vai além do nosso estado”, disse o mestre e presidente da Sobac
Ivan Marinho, durante a missa que foi o ponto máximo da procissão. Na
celebração, os tiros ficaram de fora, mas o ritmo junino, puxado por um coral
de nome peculiar – Boca de Bacamarte – e ao som de sanfona, zabumba e pífano,
deram o tom dos cânticos. No cântico final, a Ave Maria Sertaneja, imortalizada
por Luiz Gonzaga, teve muito “macho” e muita “muié” de bacamarte em punho,
segurando as lágrimas.
Clima de Festa
No
meio da multidão, quando os bacamarteiros saíam da igreja, devotada a Santo
Antônio, padroeiro do Cabo de Santo Agostinho, o clima era de festa. A fumaça
dos tiros subia a ladeira da Rua Doutor Antônio de Souza Leão. O estampido dos
bacamartes atraía curiosos, de celular na mão e incrédulos em ver tantos
bacamarteiros. “Parece coisa de cordel, arrancada do meio da história e,
tristemente, com tão pouca gente nas ruas para prestigiar”, disse o estudante
Pedro Alcântara, 23 anos. Ele estava certo. Mas os bacamarteiros desciam rumo à
estação ferroviária do Cabo de Santo Agostinho.
Na
contramão do tráfego, a multidão de amantes do bacamarte parecia dizer que
estava ali, em um dos municípios mais industrializados de Pernambuco, para
manter a tradição. E manteve. Em frente da estação, no pátio, as mesas estavam
postas para matar a fome de quem veio de tão longe, de cidades como Solidão ,
Serra Talhada, Machado, em Pernambuco, e de Capela e de Japaratuba, em Sergipe.
Ou de Pesqueira, no Agreste pernambucano, de onde, nos anos 1960, veio a
inspiração para se organizar o grupo de bacamarte do Cabo. Disso Socorro
Leandro, 48 anos, tomou conhecimento ontem. Ela viajou de Pesqueira para o
encontro. “Perdi a conta de quantos tiros dei nestes anos que me tornei
bacamarteira”, relembrou, enquanto fazia a contagem do tempo dedicado à
tradição.
Lembranças
Depois
de parar o olhar no horizonte, Socorro assegurou: “Tenho quatro anos de tiros”.
Para ela, trajada “conforme a prática”, de roupa azul e lenço no pescoço, é
muito tempo e esforço. É o valorizar da presença feminina em uma tradição
iniciada por homens. Marcada por homens. E na força da “garrancheira”, um dos
nomes dado ao bacamarte, uma arma de fogo de cano curto e largo, empregada na
Guerra do Paraguai, na segunda metade do século 19.
Ao
fim do cortejo, Socorro, Israel e Ivan ficaram sob a mesma tenda, montada em
frente à estação ferroviária. Sob as árvores, as armas e os chapéus. Em uma
delas, dos cordeiros pendurados, limpos e prontos para o corte e para a brasa.
“Festa assim tem que ter carne. Carne boa”, pontuou um dos bacamarteiros
responsáveis pela iguaria. Bem perto, uma garrafa de aguardente e um copo
passado de mão em mão enquanto os bacamarteiros insistiam em seis tiros. Dez,
vinte, trinta. Contei mais de 50 em meia hora. Mas foram mais de mil
durante as quase oito horas do encontro de ontem, que terminou ao som da
sanfona e com a certeza de que, no próximo ano, tem mais.
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