Foi aos 45 minutos do segundo tempo. Após seis anos de seca, o açude
Boqueirão, única fonte de abastecimento de Campina Grande (PB), registrava
apenas 2,9% de sua capacidade — o nível mais baixo desde a inauguração, em 1957,
pelo então presidente Juscelino Kubitschek.
“Só tinha água duas vezes por semana. Enchia uns bocados de baldinho,
porque não podia comprar a caixa-d’água”, lembra a pensionista Teresinha Peres,
77. “E cheirava horrível, tinha um mau gosto.”
À beira do abismo, a ansiedade dos campinenses era enorme quando a água
do São Francisco chegou ao Boqueirão, em 18 de abril de 2017. Levou 38 dias
para encher os 110 km de leito seco do rio Paraíba entre o açude e o final do
canal da transposição do Eixo Leste, inaugurado um ano atrás.
Não havia plano B. “É quase impossível imaginar o atendimento de Campina
Grande com carro-pipa”, diz Ronaldo Meneses, gerente regional da Cagepa
(Companhia de Água e Esgotos da Paraíba). “Teria sido o caos. A transposição
chegou no momento do quase colapso.”
O impacto foi rápido. No fim de agosto, mesmo sem chuvas, o açude
Boqueirão saiu do volume morto (8,2%), encerrando 33 meses e 19 dias de
racionamento, o mais longo da história campinense, e agora tem 15,8% da
capacidade.
Hoje, a terceira maior cidade do semiárido (410 mil habitantes) e outros
32 municípios da Paraíba e de Pernambuco estão com o abastecimento de água
normalizado, beneficiando 1 milhão de pessoas, segundo o Ministério da
Integração Nacional.
Além de água todo dia, Peres elogia a pressão forte e o gosto doce. Já o
balde maior ganhou outra função. “Agora, está com as bonequinhas da minha
neta.”
Mas nem todos foram beneficiados. Por falta de encanamento ou por estarem
fora do alcance do Boqueirão, algumas comunidades rurais e cidades menores da
região mantêm a dura rotina da seca. É o caso de Puxinanã, a 16 km de Campina
Grande.
“A água é um sacrifício”, diz a agricultora Jéssica Silva, 18, que mora
no sítio do pai, com oito irmãos e 11 sobrinhos, além do próprio filho. A 3 km
dali, uma linha invisível os separa da água do São Francisco. “Vem da bica,
pelos telhados [captação da chuva]. Quando a seca bate, a gente tem de comprar
de carro-pipa”, afirma Jéssica, ao lado da cisterna, que armazena água para
toda a família e os animais.
Puxinanã não receberá água do São Francisco. O município integrará outro
sistema, a barragem de Camará, que tem níveis baixos desde o seu rompimento, em
2004, e atualmente passa por reformas, segundo a Cagepa.
A expectativa agora é com a conclusão do Eixo Norte, que levará água a
Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará. Deve ser entregue no segundo
semestre, um atraso de seis anos. Ao todo, o Pisf (Projeto de Integração do São
Francisco) custará R$ 9,6 bilhões aos cofres públicos, o dobro do previsto
inicialmente pelo então governo do presidente Lula (PT).
ÁREA RURAL: No campo, o impacto tem sido menor. Com o abastecimento urbano
prioritário e a captação no São Francisco abaixo da cota máxima por causa da
baixa vazão, a irrigação está restrita a 0,5 hectare por agricultor, o
equivalente a meio campo de futebol.
Segundo levantamento feito em novembro pela ANA (Agência Nacional de Águas), há 340 hectares irrigados pela transposição na Paraíba, de um total máximo de 500 hectares permitidos hoje.
Mesmo com o tamanho reduzido, muitos estão satisfeitos com a água doce
do São Francisco, que substituiu os poços salobros. Está um paraíso, melhorou
100%”, diz o produtor de pimentão Jair Macedo, 45, de Barra de São Miguel (PB).
Não é figura de linguagem: antes, o agricultor colhia metade das 500 caixas de
pimentão que produz a cada 15 dias, usando um sistema de gotejamento. “A
fruta é muito melhor, quase não tem desperdício.”
Para a colheita, Macedo emprega dez pessoas, a uma diária de R$ 50. A
produção é embarcada num caminhão e vendida no Recife. Ele diz que a renda é
suficiente para sustentar mulher e filho único.
Os beneficiados pela irrigação são a minoria. Para os produtores mais
distantes da água do São Francisco, o alto custo e os desafios logísticos para
instalar uma bomba e quilômetros de mangueira inviabilizam o acesso.
“Se eles botassem um chafariz do São Francisco aqui, as coisas ficariam
boas”, diz o agricultor Inaldo de Souza, de Sumé (PB). Seus 110
hectares, usados principalmente para criar bode, estão a cerca de 3 km do rio
Paraíba.
Ele diz que nunca foi orientado sobre como a transposição funciona. Para
a casa, compra água de carro-pipa, enquanto os animais matam a sede com o
líquido salobro e sujo de um poço artesiano.
Na avaliação de Salomão Medeiros, diretor do Insa (Instituto
Nacional do Semiárido), a água do São Francisco, por ter alto custo, precisa
ter um destino nobre — termo que, para ele, ainda precisa ser mais bem
discutido.
Ele ressalta que o abastecimento urbano, prioritário, não separa domicílios
de grandes fábricas (o parque industrial da região inclui a produção de
Havaianas).
“E a produção de alimentos, a sobrevivência dessas pessoas?”, diz
diretor do Insa, ligado ao Ministério da Ciência com sede em Campina
Grande. “Você já ouviu falar que a água cessa para agricultura, mas você já
ouviu falar que cessa para uma indústria?”
O superintendente de Regulação da ANA, Rodrigo Flecha, afirma que o Eixo
Leste ainda funciona em fase de pré-operacional — ou seja, os
agricultores, por ora, não pagam pela água.
O impacto só poderá ser avaliado no longo prazo, com ajustes ao longo do
caminho para os diversos usos, diz. “É preciso entender o Pisf não
como um projeto imediatista, mas que vai se estruturando. E, à medida que
isso ocorrer, dará segurança hídrica e mudará o panorama socioeconômico do
semiárido brasileiro.”
IMPACTO AMBIENTAL: Uma das principais polêmicas da transposição, o impacto no rio São
Francisco tem sido mínimo até agora, segundo a ANA (Agência Nacional de Águas)
e pesquisadores da Univasf (Universidade Federal do Vale do São
Francisco), instituição responsável pelo monitoramento ambiental da região.
“Do nosso ponto de vista, o impacto é insignificante em relação ao
benefício que a transposição traz”, afirma o superintendente de regulação da
ANA, Rodrigo Flecha.
Até 2025, o Pisf (Projeto de Integração do Rio São Francisco)
tem autorização da ANA para bombear 26,4 m³ por segundo, para abastecimento
humano e usos difusos. Na semana retrasada, a vazão do rio em Morpará (BA), que
fica antes da captação, era de cerca de 1.500 m³ por segundo.
A ANA também é responsável por gerar indicadores técnicos e por aprovar
planos de gestão estadual, entre outras atribuições. Responsável pelo
acompanhamento da fauna e da flora no entorno da transposição,
a Univasf tampouco detectou impactos negativos significativos no rio
São Francisco após um ano de funcionamento do eixo leste.
Já nos açudes e no rio Paraíba, que receberam a água da transposição, os
pesquisadores registraram o aumento de peixes, incluindo a chegada de espécies
do rio São Francisco —em formas larvais e juvenis, eles
conseguem sobreviver à força das estações de bombeamento.
Apenas no açude Areias (PE), o primeiro da transposição, as espécies
pularam de 5, em 2015, para 14 neste ano.O monitoramento também
apontou a melhoria da qualidade da água dos açudes, que abastecem tanto cidades
próximas como mais distantes, por meio de carros-pipa. “A água do São Francisco
reduziu a salinidade, com reflexos na quantidade e na diversidade de insetos aquáticos”,
afirma a bióloga Vera Uhde, do Cemafauna (Centro de Conservação
e Manejo de Fauna da Caatinga).
Uma preocupação para o futuro é o aumento do desmatamento na área de
influência do canal, explica o biólogo Renato Rodrigues, coordenador
do Nema (Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental), que acompanha
a fauna numa área pouco maior do que o estado da Paraíba.
Ele compara o impacto do canal ao de uma estrada: ambas as obras têm
área construída pequena, mas movimentam a economia, com impactos ambientais.
“Essa água pode gerar pressões diferentes de propriedades privadas ao redor, e
isso aumenta o desmatamento”, diz o biólogo, ressaltando que o problema não foi
detectado até agora.
Durante as obras, o programa administrado
pela Univasf resgatou cerca de 145 mil animais, dos quais 127 mil
retornaram à natureza. Houve também o plantio de 220 mil mudas ao longo da
faixa de 200 metros em volta do canal. Para mitigar o impacto da obra,
a Univasfpropôs a criação de uma unidade de conservação estadual na região
da Serra do Livramento (PE) com aproximadamente 30 mil hectares.
O processo, porém, ainda está em estágio inicial. Entre os agricultores
vizinhos à captação do Eixo Leste, em Petrolândia (PE), tampouco há relatos de
alterações no São Francisco provocadas pela transposição.
Para Valdir de Santana, 47, o atual nível baixo do rio é resultado de
sete anos de seca, e não da estação de bombeamento a poucos quilômetros de sua
propriedade, onde planta melão e uva irrigados.“Transposição é melhor do que
barragem”, diz. “A barragem gera energia, mas e o coitado que está morrendo de
sede lá no centro da caatinga?” (Via: Folhapress)
Blog: O Povo com a Notícia